Por Pedro Eduardo de Felício, prof. titular da Faculdade de Engª de Alimentos da UNICAMP.
O começo de tudo coincide com a I Grande Guerra
“A Inspeção de Carnes, no Brasil, progride, porém não tanto como era de se esperar para um país como este em que a pecuária está se tornando, e ainda há de ser maior, uma grande fonte de riqueza”. Sábias palavras do Dr. Otto de Magalhães Pecego, proferidas numa palestra, em 1926, sobre os primeiros anos do SIF – Serviço de Inspeção Federal, que este ano comemora 100 anos da publicação do Decreto nº 11.462, de 11 de janeiro de 1915. O referido decreto referia-se à criação da inspeção de produtos de origem animal pelo novo órgão do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, denominado “Serviço de Inspeção de Fábricas de Produtos Animais” e abreviado para SIP – Serviço de Indústria Pastoril. O nome Serviço de Inspeção Federal – SIF viria substituir o SIP em 1933.
Dr. Pecego, um dos grandes nomes da história da Inspeção Federal brasileira, acertou em cheio na previsão de que a pecuária tornar-se-ia muito importante para a economia do país, e seu diagnóstico da lentidão no progresso da inspeção continua válido até os dias de hoje. Tudo caminha lentamente e com escassez de recursos.
O que se vê é um entra e sai ministro da agricultura, mas poucos demonstram compreender a necessidade de uma maior destinação de recursos para tornar o SIF cada dia mais atualizado, visando proteger a população brasileira e a dos países importadores das doenças comuns a homens e animais e prevenir, tanto quanto possível, a contaminação dos alimentos por microrganismos causadores de intoxicações e infecções de origem alimentar. Alguns, por desconhecimento da história, parecem ignorar o fato de que a Inspeção é um órgão eminentemente técnico, que não pode ter sua hierarquia e ações subordinadas a interesses imediatistas de natureza política.
O SIF nasceu sob o signo da valorização da ciência e da atualização de seu corpo técnico. Pardi (1996), no livro “Memória da Inspeção Sanitária e Industrial de Produtos de Origem Animal no Brasil: O Serviço de Inspeção Federal – SIF”, elogia a visão do ministro João Gonçalves Pereira Lima, que reconhecendo a importância da atualização de conhecimentos dos técnicos do Ministério, fez promulgar o Decreto nº 13.028, de maio de 1918, visando proporcionar cursos de aperfeiçoamento na Europa e Estados Unidos. Relata que em três anos, 77 funcionários fizeram cursos no exterior.
Muita coisa aconteceu nesses 100 anos desde a criação do Serviço de Inspeção Federal. Os inspetores estrangeiros e os médicos microbiologistas foram substituídos por veterinários brasileiros contratados entre os egressos das primeiras turmas da Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, formadas a partir de 1917, escola esta que, nas palavras do grande inspetor, higienista e precursor da zootecnia brasileira, Miguel Cione Pardi, estabeleceu “pela primeira vez no mundo, uma cadeira relacionada à Inspeção de Carnes e Alimentos de Origem Cárnea”, em 1921.
Na mesma época, motivados pela demanda de carne da Europa durante a I Grande Guerra, instalaram-se no Brasil alguns frigoríficos estrangeiros, como a britânica Cia. Anglo e as empresas americanas Wilson, Swift e Armour, que logo começaram a exportar. Durante algumas décadas, tais empresas possuíam os únicos frigoríficos deste país, que serviram de modelo e – por meio dos inspetores federais – transferiram a melhor tecnologia existente à época nos Estados Unidos, para as novas construções e reformas, que transformariam charqueadas em matadouros industriais e, estes, bem mais tarde, em matadouros-frigoríficos e fábricas de produtos cárneos.
Foi na década de 20 que se deu a criação das seções de “Carnes e Derivados” e “Leite e Derivados”, e que foi instituído um manual completo de “Inspeção Sanitária Federal de Frigoríficos, Fábricas e Entrepostos de Carnes e Derivados” (Guimarães, 1981).
A década de 30 é marcada pela reestruturação do Ministério, que passou a ser de Agricultura somente e não mais Agricultura, Indústria e Comércio, e pela criação, em 1933, da Diretoria de Fiscalização de Produtos de Origem Animal – DFPOA. No ano seguinte, conforme Pardi, a DFPOA passa a se chamar SIPOA – Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal e é aprovado o Regulamento de Inspeção de Carnes e, também, o de Inspeção de Leite e Derivados.
Com o Agrônomo Fernando Costa na pasta da Agricultura, surgem os cursos de aperfeiçoamento de inspetores e sanitaristas do Ministério, no recém-criado CNEPA – Centro Nacional de Ensino e Pesquisas Agronômicas, em 1938, que deu origem à Universidade Rural, hoje Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em 1943. Ainda nos anos 30 estabeleceram-se normas referentes à qualidade da água, aos efluentes da indústria e, também, à independência das seções da indústria e impermeabilização de pisos e paredes, inclusive pisos de currais. Entretanto, resultados concretos dessa normatização apareceriam somente na década de 50 (Pardi, 1996).
As décadas de 40 a 60 são marcadas pela expansão das atividades
No texto “O Serviço de Inspeção Federal na Área da Carne”, de 2005, Santos aborda a “notável expansão da atividade do Serviço de Inspeção Federal (SIF), traduzida em importantes medidas de ordem técnico-administrativa”, que foram tomadas nas décadas de 40, 50 e 60, cujos efeitos se estenderam pelos anos subsequentes de 70, deixando “uma marca indelével na história da Inspeção Federal.” Constituem exemplos das ações iniciadas e desenvolvidas nas décadas de 40 e 50, além da regulamentação da Lei 1283/50, em 1952, que originou o RIISPOA – Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (BRASIL, 1997), vigente até os dias de hoje, os seguintes planos que resultaram no surgimento da indústria de capital nacional:
Primeiro – O Plano de abastecimento de carne e recuperação do efetivo do rebanho nacional de corte (com destaque para o Brasil Central e o Rio Grande do Sul), que se encontrava bastante reduzido pelos grandes abates dos quatro primeiros anos da II Guerra. Em meados dos anos 60, o rebanho já estava recuperado e o Brasil volta às exportações de “chilled beef” e “frozen beef”, que estavam interrompidas desde a I Guerra Mundial. O abastecimento de carne, sob o controle do SIF, dos grandes centros – Rio e São Paulo -, diante da escassez dos anos 40, também foi coroado de sucesso.
Segundo – Plano de modernização escalonada e de ampliação do parque industrial de carne, que estava limitado às companhias estrangeiras, as quais serviriam de modelo aos novos estabelecimentos e às charqueadas que, em 1950, perderiam o registro para abater gado a menos que fossem remodeladas e reconhecidas como matadouros-industriais. O plano envolvia, também, o aprimoramento da metodologia de trabalho e a qualificação dos inspetores, que resultou segundo Santos (2005), “em sólido embasamento para o formidável desempenho do SIF na década de 70”.
E terceiro – Plano de interiorização de matadouros-frigoríficos em regiões geoeconômicas estudadas, uma vez que os existentes eram poucos e concentrados nos estados de São Paulo, capital e interior, no Rio Grande do Sul e em Mendes no Rio de Janeiro. Com as transformações direcionadas pelo SIF, as charqueadas têm aumentadas suas cotas de abates de fêmeas bovinas, que estavam contingenciadas no esforço de recuperação do rebanho após a II Grande Guerra, e passam a fabricar farinhas de carne e ossos, adubos e rações em digestores a seco, que foram importados com créditos concedidos pelo governo na segunda metade da década de 50. O próprio Dr. José Christovam Santos, recém-formado em Medicina Veterinária, foi treinado em frigorífico de Chicago, EUA, para orientar a utilização dos digestores a seco nos matadouros-industriais.
Há ainda que mencionar os novos empreendimentos nacionais nas áreas recomendadas pelo plano de interiorização, no Brasil Central, e nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e outros, que já possuíam câmaras frias. Constituem exemplos citados por Santos (2005): T. Maia de Araçatuba, Mouran de Andradina, e Minerva de Barretos, no estado de SP; Canoas no RS; Caiapó e Ômega, em Uberlândia, e Frimisa próximo a Belo Horizonte, no estado de MG; outros em Campo Grande, então MT, e Anápolis (Mago), Goiânia (Matingo), e Pires do Rio (Brasil Central), em Goiás.
Despontaram então para o sucesso econômico e presença internacional dos anos 60, alguns grupos como: Bordon, líder mundial na exportação de “corned beef”; Cotia Trading, no abate e exportação de carne bovina, e Sadia e Perdigão, que viriam a se tornar grandes exportadores de aves congeladas e os maiores no abate e processamento de suínos. Esses dois últimos trouxeram enormes ganhos em tecnologia para o país e, mais recentemente, fundiram-se numa só empresa, a BR Foods, líder mundial no processamento de suínos e aves. Esses e outros grupos sempre tiveram inspetores do SIF orientando a construção e reformas do parque industrial e a evolução tecnológica de seus equipamentos e processos de fabricação.
A década de 60 viu surgir e prosperar a indústria nacional de equipamentos para matadouros-frigoríficos e fábricas de produtos cárneos. Mais uma vez, temos a presença dos inspetores federais contribuindo para o desenvolvimento das inovações que dariam origem ao que se tornou conhecido no meio como “Projeto Brasileiro de Matadouro-Frigorífico”. Surgiram, também, as fábricas de rações para animais, que se multiplicaram em função do aumento no suprimento dos insumos milho e soja, bem como dos subprodutos de matadouros transformados em farinhas de carne e de carne e ossos. Além da enorme contribuição para a suinocultura, essas fábricas de rações deram um impulso à avicultura nacional.
As normas higiênico-sanitárias para exportação de carne
Para finalizar os feitos das décadas de 50 e 60, é preciso lembrar a implantação das “Normas Higiênico-Sanitárias e Tecnológicas para Exportação de Carne”, a partir de julho de 1965, com importante repercussão nos países importadores de carne brasileira. Entre outras providências, exigia-se que a Seção de Desossa da indústria trabalhasse em ambiente climatizado a 16ºC, de modo a proporcionar maior conforto aos operários. Saliente-se que o fechamento de portas e janelas com abertura para o exterior passa a ser requerido pelas Normas, para evitar possível contaminação de carnes por poluentes do meio externo, daí a necessidade de climatizar o ambiente da sala de desossa.
Curioso que jamais houvera uma só exigência dos países importadores quanto a este item tão importante, mas após a implantação, passaram a exigir do Brasil a redução da temperatura para 12 e até 10ºC, requisito esse que Santos (2005) considera desnecessário, pois o trânsito da carne pela desossa é rápido, não daria tempo para elevação significativa de temperatura, antieconômico para a indústria, insalubre e desconfortável para o trabalhador.
As Normas também recomendavam a esfola aérea, ou seja, remoção da pele com o bovino dependurado no trilho aéreo da sala de matança com os operários localizados sobre plataformas, em substituição à esfola em “camas” sobre o piso, com vantagens e aceitação imediata nos estabelecimentos de abate da época.
Em razão da evolução desencadeada pelas Normas Higiênico-Sanitárias e Tecnológicas, as missões sanitárias de vários países importadores de carne “in natura” ou processada passam a visitar e aprovar com relativa facilidade as plantas dos interessados em exportar. A esse respeito, o USDA – Departamento de Agricultura dos Estados Unidos manifestou-se assim: “No caso do Brasil, temos a satisfação de informar que os Estados Unidos reconhecem ser o sistema de inspeção de carnes comparável ao organizado e mantido neste país” (Santos, 2005).
São também do final da década de 60 o “Plano de Padronização e Inspeção Sanitária e Industrial de Produtos de Origem Animal”; a criação e instalação do “Centro de Treinamento em Inspeção de Carnes”, junto ao Frigorífico Anglo em Barretos, destinado à formação complementar de médicos veterinários inspetores e auxiliares técnicos da área de carnes, e a elaboração do “Manual Técnico em Inspeção de Carnes – I – Bovinos”, editado em 1971.
A Lei nº 5.760 conhecida como a Lei da Federalização
A década de 70 será sempre lembrada pelo processo de federalização dos serviços de inspeção industrial e sanitária, uma tentativa parcialmente exitosa, que teve importantes reflexos nas décadas seguintes, de passar à responsabilidade do SIF a inspeção de carnes e laticínios nos estados e municípios, onde fosse possível aceitar as instalações existentes, quando não, recomendar e proceder ao seu fechamento. A federalização, segundo Ruy Brandão Caldas (1975), cit. p. Pardi (1996), foi “a maior campanha de saneamento já encetada no campo de alimentos no Brasil.”
Felício (2011) resumiu os fatores que levaram à promulgação da Lei 5.760, publicada no dia 7 de dezembro de 1971, no governo Médici, pelo ministro da agricultura Luiz Fernando Cirne Lima, e alguma coisa sobre os resultados obtidos e a paralisação do processo.
A lei 5.760, que ficou conhecida como Lei da Federalização decretava no Art. 1º – “É da competência da União, como norma geral de defesa e proteção da saúde (…) a prévia fiscalização sob o ponto de vista industrial e sanitário, inclusive quanto a comércio municipal ou intermunicipal, dos produtos de origem animal, de que trata a Lei nº 1.283, de 18 de dezembro de 1950.” Parágrafo único – Serão estabelecidas em regulamento federal as especificações a que os produtos e as entidades públicas ou privadas estarão sujeitos. No Art. 2º apareciam sanções administrativas a serem aplicadas em casos de não cumprimento da lei. Note-se que a responsabilidade pela inspeção passa a ser da competência da União, mesmo a da carne comercializada a nível municipal ou dentro do estado.
Pardi et al. (1993), que tiveram grande envolvimento com a federalização, escreveram: “em curto lapso de tempo, surpreendentes resultados foram alcançados”, entre os quais a interiorização do parque industrial e a regionalização dos abates; o melhor aproveitamento dos subprodutos; a ampliação do número de estabelecimentos industriais aptos ao comércio interestadual e internacional; a melhoria da qualidade dos produtos para o consumidor brasileiro; a maior eficiência na arrecadação tributária; a tecnificação da avicultura, suinocultura e pesca; a ampliação do mercado de trabalho e o surgimento da mentalidade empresarial no setor.
A execução da lei 5.760 ocorreu, após uma série de levantamentos, em 1972, no Rio Grande do Sul e, a seguir, em ordem cronológica, nos estados de Sergipe, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Amazonas, Pernambuco, Piauí, Alagoas, Espírito Santo, Maranhã e Distrito Federal. Em 1981, já debilitado, o processo foi estendido ao estado de Minas Gerais (Pardi, 1996).
A execução da federalização havia sido paralisada, em 1976, pelo então presidente Geisel, de cujo governo era ministro da agricultura o Eng. Agr. Alysson Paulinelli, na fase de abertura política, diante dos pedidos de congressistas que estavam recebendo pressão de suas bases. Essas bases eram formadas por vereadores e deputados estaduais de regiões metropolitanas onde havia muito comércio de aves abatidas nos pontos de venda conhecidos como avícolas, que estavam sendo fechadas pelo SIF. Supõe-se que tenha havido, também, pressão de políticos dos estados que seriam os próximos a serem atingidos nas etapas seguintes de federalização.
Pardi et al (1993) relatam o desfecho da federalização: “Mesmo não tendo completado os objetivos integrais desta lei, os seus benefícios perduraram e permitiram que se devolvesse aos estados e municípios a jurisdição das respectivas áreas, desde que os estabelecimentos não fizessem comércio interestadual ou internacional, nas condições previstas pela Lei nº 7.889/1989 que, virtualmente, reedita os termos da Lei nº 1283/1950.”
Num balanço dos resultados alcançados com a federalização e seus reflexos ao longo dos anos 70, apresentado pelo SIF no International Meat Hygiene Symposium, em Quebec, Canadá, em agosto de 1987, lê-se que as porcentagens de bovinos, suínos, e aves abatidos sob o controle da inspeção federal, antes de 1971, eram de 32, 36 e 31, respectivamente, das estimativas de abate no Brasil. Após a federalização, na primeira metade da década de 80, as porcentagens atingiram 74, 83 e 90 % dos abates, respectivamente. Um feito extraordinário, provavelmente inédito no mundo, este trabalho de uma década realizado por um órgão público de fiscalização sanitária em um país de dimensões continentais como o Brasil.
A revogação da Lei de Federalização da Inspeção
A década de 80 caracterizou-se pelo prosseguimento dos esforços no sentido de manter as conquistas do processo de federalização, que ainda estimulavam número significativo de inspetores, mas o fato é que deixavam de ser da responsabilidade do SIF os estabelecimentos desinterditados. Segundo Pardi (1996) no RS, por exemplo, foram reabertos “uns 65 estabelecimentos, exatamente aqueles que estarreceram os técnicos e a opinião pública” nos levantamentos preliminares à sua interdição.
Ao final de seu governo, o presidente Sarney, através da medida provisória nº 94, convertida na Lei 7.889, de 23 de novembro de 1989, do Congresso Nacional, revogou a Lei 5.760, a da Federalização, e transferiu as obrigações pela inspeção sanitária dos produtos de origem animal aos estados e municípios, ficando sob a responsabilidade do governo federal os estabelecimentos que fazem comércio interestadual ou internacional. As obrigações transferidas a estados e municípios jamais foram assumidas integralmente pelos governantes, que em muitos casos se contentam em oferecer uma chancela oficial a matadouros que não passariam pelo crivo de uma auditoria técnica isenta.
Esses matadouros, com ou sem câmaras frigoríficas, com ou sem aproveitamento integral de subprodutos, com ou sem condições de dar um destino adequado às carcaças e vísceras que venham a ser condenadas, por mais improvável que seja, enviam dados de abate ao IBGE que entram para as estatísticas, contribuindo para reduzir as estimativas de abate informal. Com as exceções de praxe, é a clandestinidade com chancela oficial.
Em 2013, uma publicação intitulada “Radiografia da Carne no Brasil” relatou um levantamento que identificou no país 1.512 registros de estabelecimentos: 243 com SIF, 466 com inspeção estadual e 803 com inspeção municipal. Usando números do IBGE de 2012, o estudo demonstrou que o número de matadouros municipais quadruplicou entre 1997 e 2011. Uma amostra de matadouros com inspeção estadual e municipal equivalente a um quarto dos estabelecimentos foi visitada entre setembro de 2012 e fevereiro de 2013, em oito estados que totalizam 61% do rebanho bovino nacional. A conclusão do levantamento foi que “a inconformidade neste segmento é de aproximadamente 80%, sem variações muito expressivas entre as diversas regiões do país” (Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, 2013).
Segundo o IBGE (2015), do 4º trim. de 2013 ao 3º trim. de 2014, 8,3 milhões de bovinos (24,2%) de um total de 34,2 milhões foram abatidos nesses estabelecimentos sob o controle de estados e municípios. A mesma estatística feita para suínos, no mesmo período, dá 4,4 milhões (12%) de um total de 36,6 milhões de abates com algum tipo de inspeção oficial. A título de observação, a situação do abate de frangos é muito diferente, uma vez que 95% do total de abates são inspecionados pelo SIF.
Sempre tratando do SIF na parte específica do setor de carnes e derivados, pouco há para dizer sobre ações de impacto havidas no órgão na década de 90. Assim como na década anterior, os inspetores federais continuaram atuando de modo a garantir a qualidade higiênica e sanitária das carnes bovina, suína e de aves, bem como das carnes processadas pelas indústrias, cujas produções, consumo e exportações seguem em expansão até os dias de hoje e a magnitude de sua tarefa pode ser demonstrada pelas quantidades de carnes produzidas no país, em 2014, das três principais espécies.
Começando com a espécie bovina, 75,8% de 34,2 milhões de cabeças abatidas sob o controle federal, estadual ou municipal, foram inspecionadas pelo SIF (IBGE, 2015, somados o 4º trim. de 2013 e 1º-3º trim. de 2014), ou 60% da produção brasileira de gado bovino estimada em 43 milhões de cabeças, que resultaram em 9,9 milhões de t de carcaça e 21% das exportações mundiais de 9,8 milhões de t (USDA, 2014).
Na carne suína foram abatidas cerca de 36,6 milhões de cabeças (soma do 4 trim. de 2013, 1-3 trim. de 2014), sendo aproximadamente 88% inspecionadas pelo SIF (IBGE, 2015,), com uma produção estimada em 3,3 milhões de t de carcaça e uma exportação de 8,4% do total mundial de 6,9 milhões de t (USDA, 2014).
A produção de carne de frango é quase toda (94,5% do que é registrado pelo IBGE, 2015) feita sob Inspeção Federal. Foram 12,4 milhões de t, praticamente 15% do total mundial, das quais os brasileiros consumiram 8,8 milhões de t e 3,6 milhões de t foram exportadas em 2014, ou seja, 34,4% do total mundial de 10,5 milhões de t (USDA, 2014).
Vale salientar que toda carne exportada é inspecionada e tem sua documentação sanitária avalizada pelo SIF em várias etapas do processo, desde o abate até os portos de embarque nos navios.
Uma nova legislação decorrente do SUASA
Atualmente, o que está em vigência pela legislação brasileira é o Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária (SUASA), criado (Lei nº 9.712/1998) no governo Fernando Henrique Cardoso e regulamentado no governo Lula, em 2006. Os documentos vigentes são os Decretos presidenciais 5741/2006 (governo Lula, ministro Roberto Rodrigues), 7.216/2010 (governo Lula, ministro Wagner Rossi) e 7.524/2011 (governo Dilma Rousseff, ministro Wagner Rossi) que regulamentam o funcionamento do SUASA, e as Instruções Normativas MAPA nº2/2009 e nº36/2011, que estabelecem requisitos para estados, distrito federal e municípios que queiram aderir ao SISBI – Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal.
Em síntese, a coordenação nacional do sistema é do DIPOA – Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal, do MAPA, ao qual está subordinado o SIF. Os solicitantes – estados ou municípios – deverão dispor previamente de registros auditáveis referentes à implantação e manutenção do seu Serviço de Inspeção, e adequar seus processos e procedimentos de inspeção e fiscalização, ficando obrigados a seguir a legislação federal ou dispor de regulamentos equivalentes. A normativa prevê que os interessados poderão solicitar auditoria prévia, em caráter de orientação, a fim de construir seus planos de trabalho, reunir a documentação necessária e adequar seus procedimentos.
Os estados da federação mais adiantados em adesões ao SISBI, segundo o MAPA (BRASIL, 2015), são os da região Sul (PR, SC e RS), que tiveram diversos estabelecimentos, de fabricantes de linguiça a entrepostos de carnes e matadouros-frigoríficos, credenciados a partir de 2011.
Nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, MG, ES, MS e GO tiveram estados ou municípios com adesões aprovadas. No Nordeste, a Bahia foi o único estado até agora a ter suas duas solicitações atendidas, uma fábrica de conservas e um matadouro-frigorífico.
Os estados da região Norte e todos os outros não mencionados ainda não solicitaram, ou estão com solicitações em processo de análise, este é o caso, por exemplo, de São Paulo, que segundo o gestor do SISBI-POA da Superintendência do MAPA no estado (comunicação pessoal), analisa solicitação do Serviço de Inspeção Estadual e de alguns municípios, que estão com processos adiantados, e deverão ter suas adesões aprovadas em breve.
Conclusão
Não obstante os inúmeros obstáculos que tiveram que ser superados nesses 100 anos de existência, obedecendo a legislações várias – que em alguns momentos críticos promoveram consideráveis desvios de rota – e promovendo ações de impacto e efetividade que foram apresentadas aqui de maneira breve, até superficial dada a extensão do tema, o SIF está aí bem vivo e atuante à espera de investimentos que permitam sua atualização e aperfeiçoamento.
Além de investimentos, talvez se deva considerar que este órgão federal precisa ter mais autonomia científica e administrativa que dele afastem os interesses imediatistas de empresas e políticos. É de se supor que esses últimos irão pressionar o SIF para acelerar a análise dos processos que resultem nas concessões de equivalência pelo SISBI a pequenos e médios matadouros e fábricas de produtos cárneos.
Por vezes, esses matadouros e fábricas serão tecnicamente inviáveis por inadequação de instalações, equipamentos, e de descarte de vísceras e carcaças condenadas, bem como de captação e tratamento de água e tratamento de efluentes. Será um erro irreparável se o órgão federal centenário se submeter às pressões para que tais estabelecimentos possam comercializar seus produtos alimentícios de origem animal entre municípios e além das fronteiras de seus respectivos estados.
Alguns países mais avançados tecnologicamente estão apontando o caminho para evitar pressões políticas ou de outra natureza. A Canadian Food Inspection Agency(Agência Canadense de Inspeção de Alimentos), uma moderna organização governamental reguladora de base científica, prestadora de serviços de inspeção, segurança dos alimentos, saúde animal e vegetal, mediante a cobrança de taxas pré-fixadas pode ser um exemplo interessante a ser estudado.
No Brasil, na área de saúde há os exemplos de sucesso da ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, uma autarquia pública de regime especial, que coordena o “Sistema Nacional de Vigilância Sanitária”; e, da EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, na pesquisa científica e tecnológica voltada para a produção agropecuária. A EMBRAPA é uma empresa pública de direito privado com relevantes serviços prestados à nação brasileira.
Para concluir, volta a frase de Otto de Magalhães Pecego, de 1926, citada no início: “A Inspeção de Carnes, no Brasil, progride, porém não tanto como era de se esperar para um país como este em que a pecuária está se tornando, e ainda há de ser maior, uma grande fonte de riqueza”.
Por Pedro Eduardo de Felício, prof. titular da Faculdade de Engª de Alimentos da UNICAMP.