Notadamente a atividade pecuária é a mais alvejada pelos ambientalistas, que associam todo o desmatamento feito no Brasil com o consumo de carne bovina.
Leigos na área discorrem sobre a pecuária, e suas tendências, desconsiderando o fato de que houve ganhos em produtividade nos últimos anos. Para eles, a bovinocultura é, e sempre será, uma atividade de baixa produtividade, pouca tecnologia e de comportamento extensivo, o que impediria o aproveitamento mais eficiente do território disponível à produção.
Seguindo este raciocínio, a pecuária ficaria sempre confinada à coluna de passivos ambientais dentro do agro brasileiro.
No entanto, tal posicionamento deriva do desconhecimento da pecuária e do preconceito com relação à atividade, cuja história é bem interessante.
Até a década de 1990, a expansão da atividade visava não apenas a produção de carne bovina, mas também atendia a exigência de ocupar áreas em regiões distantes. É por esta razão que a atividade é relacionada ao desmatamento.
A reflexão a seguir nasceu de um questionamento motivado pelas semanas que antecederam a Rio+20, conferência das Nações Unidas sobre desenvolvimento sustentável: Como ficará a pecuária de corte sem o avanço da fronteira agrícola?
Interessante que muitas vezes nos inserimos na rotina de trabalho e nos esquecemos de avaliar conceitos simples, coisas que sabemos, que fazem parte do nosso dia a dia, mas que nunca paramos para analisar em perspectiva histórica.
Diante deste questionamento, organizamos reuniões e debates pela internet com diversos especialistas na pecuária, o que nos possibilitou reunir um compilado que nos esclarece o passado e nos norteia com relação ao futuro da pecuária.
A história da expansão agrícola
Diante da cultura europeia, responsável pela colonização de nosso país, o ambiente tropical do interior do Brasil era extremamente hostil. Embora flora e fauna sejam suficientemente ricas, expandir a atividade econômica para o interior não era coisa simples, apesar de necessário.
Poucas eram as alternativas disponíveis para avançar em áreas de abertura, com ausência total ou quase total de infraestrutura, estradas e recursos humanos capacitados. Dentre as poucas alternativas, a pecuária de corte era uma das mais atraentes, principalmente a atividade de cria.
Além da viabilidade técnica de implantar projetos extensivos com pouco aporte de capital no início, a liquidez do investimento (o próprio rebanho) tornava o projeto muito seguro do ponto de vista econômico. Lembre-se que a atividade estava migrando para áreas novas, com terras de baixíssimo valor e possibilidade de explorar a madeira do processo de abertura.
Outra vantagem da pecuária, que é importante frisar, é que a produção “caminhava” pelas estradas precárias em comitivas que dominavam o cenário destas regiões de abertura. O processo histórico de mudança com a chegada da infraestrutura, inclusive, faz parte do acervo cultural do interior brasileiro. Quantas músicas sertanejas, por exemplo, exploram o tempo das comitivas e a inevitável chegada do transporte rodoviário?
Lembrando ainda da expansão da agricultura brasileira, até os anos 1950 praticamente toda a atividade agrícola se concentrava numa faixa de 500 a 1.000 quilômetros de distância das regiões litorâneas.
Nas décadas de 1960 e 1970, os agricultores migraram para o oeste paulista e paranaense, num primeiro momento, e depois ocuparam parte de Goiás, Mato Grosso do Sul e oeste de Minas Gerais.
Na década de 1980, houve a grande expansão da agricultura rumo ao restante dos estados já em consolidação e em direção ao Mato Grosso, restante de Goiás e sul do Tocantins, Rondônia, oeste baiano, norte de Minas Gerais e pequenas áreas dos outros estados. Até mesmo Roraima, foi ocupada ainda nesse período. Na década de 1990, começou a consolidação do Maranhão, Piauí, Tocantins e algumas regiões do Amazonas e Pará.
Em todas as regiões a pecuária chegou primeiro, carregando o ônus de atividade desflorestadora. Esse é um passivo da história do avanço do povo brasileiro para o interior. Um passivo quase que exclusivo da produção de carne bovina.
É por isso que normalmente os profissionais da pecuária se defendem dizendo que “se a pecuária foi o machado, quem segurou o cabo foi a sociedade”. O que faz sentido, pois o avanço da produção pecuária e agrícola visa justamente a produção de alimentos e a geração de divisas para a sociedade brasileira.
Continuando no raciocínio, e na busca pela resposta ao questionamento, é importante analisar os efeitos de todo este processo ao expansionismo da produção pecuária. É fácil comprovar o histórico da pecuária precedendo a ocupação da agricultura. Um pouco mais complicado seria responder se o crescimento da produção de carne para os próximos anos depende da expansão em área.
O custo histórico do processo de ocupação
Pois bem, um dos custos deste processo é justamente a falsa sensação de que a produção depende do desmatamento para se manter.
Essa particularidade é mais evidente na atividade da cria, onde o produto final é o bezerro, macho ou fêmea, desmamado. Mesmo entre os especialistas em produção, há quem julgue difícil a manutenção da atividade de cria sem o avanço em áreas de fronteira.
No entanto, essa constatação é baseada numa realidade do passado, período que marcou todo aquele processo de avanço discutido anteriormente.
Nos anos de forte expansão agrícola, a demanda por rebanho para ocupar áreas recém abertas superava a demanda da pecuária. Como a maior parte das fazendas de abertura se destinava à atividade de cria, este desequilíbrio entre oferta e demanda foi mais acentuado no mercado dos bezerros ou animais jovens. Havia mais bezerros ofertados do que a necessidade de compra para engorda.
É fato que não foi apenas a atividade de cria que migrou para fronteiras. Algumas regiões de abertura foram caracterizadas pela engorda de bois para abate. Ainda assim, a produção de bezerros para tais projetos se localizavam em regiões mais fronteiriças ainda.
Para comprovar essa afirmação, lançamos mão dos preços históricos de bezerros e bois gordos, segundo o acompanhamento do Instituto de Economia Agrícola de São Paulo, num primeiro momento, e do Centro de Estudos e Pesquisa em Pecuária Avançada, nos anos mais recentes.
Reunindo quase 60 anos de preços históricos de bezerros e boi gordo, conseguimos montar o gráfico apresentado a seguir, na figura 1. Acompanhe.
Três informações são destacadas no gráfico: preços por arroba do boi gordo, do bezerro e da diferença entre ambos (valor do bezerro menos o valor do boi, por arrobas). Todos os dados estão corrigidos pelo Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna, da Fundação Getúlio Vargas.
Veja que historicamente o preço da arroba do bezerro vale menos que o preço da arroba do boi gordo, embora nos últimos anos essa diferença seja favorável ao preço do bezerro. Trata-se do conhecido ágio na arroba do bezerro.
Por ser difícil visualizar essa diferença, acompanhando apenas o gráfico de preços, apresentamos, na tabela 1, o resumo das diferenças entre os preços por períodos.
Observe que até os anos 1990, o valor da arroba do bezerro era cerca de 21% inferior ao valor da arroba do boi gordo. Trata-se de um claro desequilíbrio entre oferta e demanda, haja vista que é muito mais caro produzir um quilo de bezerro do que um quilo de boi gordo.
A partir dos anos 1990, com a redução do avanço rumo às fronteiras e com a estabilização da moeda brasileira, o mercado começou a se equilibrar e os preços vieram se ajustando.
Atualmente, na média, são os preços dos bezerros, por arroba, que permanecem em torno de 22% acima das cotações do boi gordo.
Na prática, o pecuarista percebe essa mudança pela evolução nas relações de troca entre o boi gordo e bezerro. Cada vez mais, compra-se menores quantidades de bezerros com a venda de um boi gordo.
Essa relação que na média histórica gira em 3,14 bezerros comprados com a venda de um boi gordo, caiu para os atuais 2,3 bezerros comprados com um boi gordo. O próprio boi que terminava com cerca de 16,5@ a 15 anos atrás, hoje é enviado ao abate por volta das 18@, na média nacional.
E mesmo abatendo o animal com um peso maior a relação de troca vem se reduzindo para o pecuarista.
Finalmente, o caminho é a intensificação
Outro custo elevado de todo este processo é o atraso na tecnificação da pecuária. Com a pecuária crescendo em área de expansão, o objetivo principal do ganho de escala era o crescimento horizontal, com o produtor buscando acumular grandes extensões de terra.
A produtividade, ou o crescimento vertical, ficaria para depois.
A oferta superior de bezerros também consistiu em um entrave no processo. Na cria, os cálculos de acúmulo patrimonial, e o povoamento de novas áreas, cobriam o baixo retorno operacional da atividade. Ainda mais nos anos em que o processo inflacionário ocultava os verdadeiros resultados econômicos. Naquela época, são inúmeros os casos de produtores que achavam estar ganhando dinheiro quando, na verdade, estavam perdendo. Mas a inflação escondia essa realidade.
Para o comprador de bezerros, a relação de troca muito favorável provocava um efeito semelhante ao das economias planificadas. Numa situação confortável, com resultados econômicos praticamente garantidos, o investimento em produtividade fica em segundo plano, geralmente.
A grande maioria dos pecuaristas só foi notar a necessidade de tecnificação nos anos posteriores ao Plano Real. E essa tecnificação ocorreu mais rapidamente nas etapas de recria e engorda dos animais, aumentando a velocidade de valorização da arroba do bezerro, diante do boi gordo.
A situação que era de sobra de bezerros até os anos 1980, passou a mudar. E hoje já se discute que a cria vem se tornando o gargalo para as pretensões brasileiras na produção de carne bovina.
Em outras palavras, se não houver aumento na produtividade das fêmeas do rebanho, a pecuária de corte verá suas perspectivas estranguladas num futuro bem próximo.
Felizmente o pecuarista está atento e vem implementando cada vez mais técnicas melhores de produção nas fazendas de cria. O estímulo é o preço do bezerro valorizado, independente do momento que se vive o ciclo pecuário. Às vezes está mais valorizado ou menos valorizado em relação ao boi gordo. Mas dificilmente a arroba de um bezerro voltará a valer menos que a arroba de um boi gordo.
Pois bem, a mesma valorização que estimula a produtividade na cria, também forçará o aumento tecnológico da recria em diante. Isso se deve justamente aos efeitos da queda nas relações de troca.
Para manter a renda com um bezerro mais valorizado, o comprador precisará terminá-lo para abate o mais cedo possível, com a maior escala que for capaz de manter. A redução das margens individuais exige o aumento dos ganhos em escala.
Com isso, nos últimos anos a pecuária vem registrando aumentos tanto na ocupação, em número de animais por hectare, como na produtividade, em quilos de carcaça produzidos por hectare. Ao longo do plano Real, a ocupação aumentou 40,2%, saltando de 0,89 para 1,25 cabeça por hectare.
A produtividade aumentou mais ainda, em 87,4%, saltando de 28,3 kg de carcaça por hectare para os atuais 53 kg de carcaça. Em termos de resultados nas fazendas, o avanço ainda é pouco para recuperar as margens dos produtores. No entanto, em efeito poupa terra, os avanços são enormes, conforme demonstrado no estudo publicado recentemente pelos pesquisadores Eliseu Roberto de Andrade Alves, Elisio Contini e Geraldo Bueno Martha Junior, todos da Embrapa.
Segundo os pesquisadores, que se basearam nos Censos de 1950 e 2006, 79% do avanço da pecuária no período é atribuído aos ganhos de produtividade. Apenas 21% dessa expansão é explicada pelo aumento da área de pastagens. Caso não houvesse os ganhos, a pecuária teria que ocupar 525 milhões de hectares para manter o mesmo rebanho e a mesma produção de carne. Inconcebível de se imaginar.
Partindo do mesmo raciocínio, a Bigma Consultoria estimou que apenas nos últimos 40 anos houve uma economia de 280 milhões de hectares, que precisariam ser abertos caso produzíssemos a quantidade atual de carne bovina com os índices de produtividade da década de 1970.
E o processo de tecnificação deve continuar, haja vista a dependência da produtividade para que o pecuarista recupere os ganhos econômicos que obtinha a algumas décadas atrás.
Na tabela 2 apresentamos uma simulação de resultados econômicos considerando um nível tecnológico estático ao longo do tempo.
Atualmente, o pecuarista que quisesse manter a mesma renda que tinha no início da década de 70, usando a mesma área, teria que produzir mais ou menos cerca de 5,3 vezes a mais por hectare.
Portanto, caso essa empresa produzisse 3 arrobas por hectare ao ano no início dos anos 70, teria que produzir mais de 15 arrobas por hectare hoje em dia para ganhar o equivalente ao que ganhava há 40 anos.
Usando ainda outro critério através da projeção de resultados de fazendas analisadas nos últimos anos, em diversas regiões do país, chegamos a um lucro médio em torno de R$59,32/ha/ano para o ciclo completo.
Quando agrupamos e comparamos fazendas com diferentes produtividades na pecuária chegamos à conclusão de que os melhores resultados são obtidos com níveis mais elevados de tecnologia, o que corrobora com as tendências apontadas na tabela 2.
Observe, na figura 2, as estimativas da Bigma Consultoria para os resultados por atividade em três níveis de produtividade por área em diversos estados do Brasil.
Embora sejam raras as fazendas de cria com produtividade acima das 8 arrobas por hectare, os resultados seriam significativamente superiores aos dos níveis anteriores.
O valor circundado no ciclo completo com a mais baixa tecnologia representa a média nacional da pecuária. A produtividade média de 53 kg de carcaça por hectare equivale a 3,5@. Reforçando o que dissemos antes, essa baixa produtividade é ainda 80,76% superior à produtividade do início do plano Real.
Essa é a maior prova do potencial da pecuária brasileira e dos ganhos que ainda estão por vir. A pecuária brasileira tem vivido e ainda viverá ganhos significativos no nível de produtividade. Só assim a atividade permitirá aos pecuaristas retorno competitivo, nos mesmos padrões obtidos pelos agricultores.
Apesar de significativos ganhos até o momento, nós só vimos o começo deste processo.
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Escrito em 02/07/2012 para a revista Agro em Foco, por Maurício Palma Nogueira, engenheiro agrônomo, diretor da Bigma Consultoria