Os parques eólicos que pipocam pela Ruta 5 ajudam a quebrar a monotonia da rodovia que liga o sul ao norte do Uruguai. De jipe ou caminhão, o trajeto de Montevidéu a Tacuarembó é quase todo marcado pelas pastagens do pampa, em um ritmo pacato que pouco lembra a incessante busca por produtividade do moderno agronegócio. Mas que ninguém se engane. Na terra de Pepe Mujica, a pecuária é parte de um estilo de vida. E a carne bovina, um assunto de Estado.
Em um país pequenino – “chiquito”, como dizem os nativos -, que não dispõe da abundância de grãos que caracteriza os vizinhos Brasil e Argentina, a produção extensiva de gado deixou de ser uma necessidade para evitar a deterioração das pastagens naturais e se transformou em um ativo explorado para a propaganda da carne uruguaia no mundo.
“Temos dois campos de futebol para cada cabeça de gado”, brinca Marcelo Secco, executivo que comanda as operações da Marfrig Global Foods no Uruguai, em alusão à liberdade de movimentação do rebanho e à comida verde.
Nesta semana, a reportagem do Valor atravessou a Ruta 5 para conhecer o principal frigorífico da brasileira Marfrig no Uruguai, em Tacuarembó, a pouco mais de 100 quilômetros da fronteira com Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul. Responsável por 22% dos abates e por mais de 30% das exportações uruguaias de carne, a companhia é o maior grupo privado do país, empregando mais de 3 mil pessoas e faturando ao menos US$ 500 milhões por ano – estimativa a partir das exportações uruguaias, que renderam US$ 1,6 bilhão em 2018.
Com um rebanho de 12 milhões de bovinos, quase o quádruplo da população local, o Uruguai se notabilizou na pecuária global como um país de rara estabilidade para os padrões da América do Sul e acesso privilegiado a cobiçados mercados, como EUA, União Europeia e China – a conquista mais recente veio em janeiro, com a abertura do Japão. O mercado externo é o coração da indústria frigorífica uruguaia. Embora o país seja o mais carnívoro do mundo – o consumo anual é de cerca de 60 quilos por habitante – 70% da produção nacional é exportada. Nessas condições, o acesso internacional é questão de sobrevivência.
As condições especiais da agroindústria do Uruguai estão relacionadas, é claro, ao tamanho do país, reconhece Secco. Afinal, as importações uruguaias representam uma parcela menor do comércio de carnes – 5% das exportações mundiais, conforme o Departamento de Agricultura dos EUA (USDA). Em comparação, qualquer abertura comercial para o Brasil, que responde por 20% das exportações de carne bovina, pode provocar forte resistência, como demonstram produtores americanos contrários à entrada da carne bovina in natura do Brasil.
Mas isso não é tudo, ressalta o brasileiro Miguel Gularte, executivo-chefe da Marfrig na América do Sul. Nas últimas cinco décadas, o Uruguai erigiu um sólido sistema sanitário, lastreado pelo Ministério da Agricultura local e, principalmente, pelo Instituto Nacional de Carnes (Inac), entidade pública de direito privado financiada com recursos dos frigoríficos e dos pecuaristas. Essa estrutura permitiu ao Uruguai criar, há mais de dez anos, um programa obrigatório de rastreabilidade do rebanho bovino, o que ajuda na certificação de importadores exigentes como os europeus.
O país também conta com um modelo nacional para remunerar os pecuaristas com base em características da carcaça. O sistema, automatizado, é regulado por quatro balanças em diferentes fases do processo produtivo, do animal vivo à carcaça bovina já limpa (toalete, no jargão setorial). Os dados da balança são enviados em tempo real para o Inac, o que também dota o país de uma capacidade estatística incomum para os padrões do segmento.
Com a gestão azeitada, os frigoríficos uruguaios conseguiram se especializar em nichos. Nesse processo, fizeram as pastagens naturais – cerca de 90% do território do país é coberto por pasto -, se transformarem em vantagem para a produção orgânica, que rende preços cerca de 30% maiores, conta Secco. Na Marfrig, 20% do faturamento é gerado nas exportações de carne bovina orgânica, especialmente para os EUA.
Conforme o executivo, a confiança dos importadores no sistema sanitário uruguaio permitiu acesso a mercados impensáveis para um país que vacina o rebanho contra o vírus da febre aftosa. Principal destino das exportações uruguaias, absorvendo cerca de 60% do volume exportado, a China também compra carne com osso e o próprio osso bovino – o Brasil só pode exportar carne sem osso em razão do alegado risco de contaminação por aftosa nos ossos.
Com essa vantagem, a Marfrig consegue vender o osso que é utilizado na preparação de caldos pelos chineses por US$ 1 mil por tonelada. Não fosse isso, o produto renderia US$ 100 e seria utilizado para a fabricação de farinha de carne e ossos.
Em busca de nichos, o Uruguai avançou na instalação de confinamentos (onde o gado é alimentado com grãos) para atender à “481”, uma cota livre de impostos criada pela UE. Mesmo sem contar com uma ampla oferta de grãos, o país utiliza o pouco que produz para abastecer o gado engordado nos confinamentos, o que permite que alguns pecuaristas cometessem a ousadia de deixar “apenas” um campo de futebol para cada. Definitivamente, não falta espaço no Uruguai.
Fonte: Valor Econômico.
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