segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A prova de fogo do Marfrig

Sob o olhar atento do BNDES, o novo presidente do grupo, Sérgio Rial, tem dois anos para reverter a queima de caixa e dar mais transparência à empresa marcada pelos polêmicos empréstimos públicos

RAQUEL LANDIM, MELINA COSTA - O Estado de S.Paulo
No dia 4 de dezembro do ano passado, Sergio Rial assinou o livro de encerramento da oferta de ações do Marfrig no escritório do Merrill Lynch em Nova York. O executivo só assume como presidente da empresa no início de 2014, mas já tomou as rédeas de fato. Rial era observado por Caio Melo, superintendente de mercado de capitais do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que acompanhou o evento.
A cena ilustra bem o momento vivido pelo grupo Marfrig, uma das maiores empresas de carnes do planeta. Sob o olhar atento do BNDES, que vem avalizando todas as decisões estratégicas, o Marfrig profissionalizou a gestão e conseguiu R$ 2,3 bilhões no mercado. Com os recursos, que resolvem as dívidas de curto prazo nos próximos dois anos, a companhia ganhou uma trégua dos credores e dos investidores, que vinham castigando a empresa.
Desde o auge, em janeiro de 2010, o valor de mercado do Marfrig, fundado pelo empresário Marcos Molina, caiu de R$ 8,2 bilhões para os atuais R$ 4,8 bilhões. Antes das captações, o endividamento total da empresa atingiu R$ 12 bilhões no terceiro trimestre de 2012, resultado de 42 aquisições feitas em cinco anos, sem gerar as sinergias esperadas.
Rial tem de aproveitar a "janela de oportunidade" que surgiu para fazer a companhia deslanchar. O maior desafio do executivo está na operação da Seara, negócio de carnes processadas adquirido há quatro anos e que representa quase 70% da receita do grupo. Hoje, a Seara tem margens menores que a concorrente BRF e é a única responsável pela queima de caixa do Marfrig - as outras operações, Keystone (EUA), Moy Park (Europa) e bovinos (Brasil e América do Sul) contribuem positivamente para o caixa da empresa.
Ao mesmo tempo em que é o maior problema do grupo, a Seara também representa sua maior oportunidade. É com esse negócio que Rial poderia reduzir a participação das commodities e elevar os lucros. "O coração da estratégia é gerar valor. O acionista que apostou no Marfrig ainda não teve o benefício da realização da nossa história", disse o executivo, ex-diretor financeiro mundial da Cargill, na primeira entrevista desde que chegou ao Marfrig.
O plano de Rial é elevar os preços dos produtos da Seara, reduzindo a distância da marca líder Sadia, da BRF. Hoje, a diferença chega a 15%, e ele quer trazer para um dígito. Também faz parte da estratégia reduzir o número de itens no portfólio e ampliar a distribuição dos atuais 70 mil pontos de venda para 100 mil, mirando o interior do País.
"A Seara tem potencial, mas vem dizendo que vai estancar a perda de caixa há algum tempo", diz Pedro Herrera, analista do HSBC. "As margens da Seara são sistematicamente piores que as da BRF e não acredito que a empresa do Marfrig vai alcançar a líder", duvida Rodolfo Amstalden, analista da Empiricus. A casa de análise de ações virou alvo de um processo do Marfrig por danos morais, devido a comentários em relatórios de resultados. O caso ainda está sendo julgado.
Enrascada. Fazer a reestruturação do Marfrig não é uma tarefa trivial, dada a complicada situação financeira da empresa e a grande proximidade com o governo. A primeira missão de Rial foi tentar organizar as finanças. No terceiro trimestre de 2012, o Marfrig estava numa enrascada. Pelas contas da agência de avaliação de risco Moody's, mesmo após vender ativos de logística nos EUA, o Marfrig tinha R$ 2,8 bilhões em caixa, insuficientes para cobrir os R$ 3,2 bilhões de dívidas de curto prazo. O grupo queimou R$ 1,4 bilhão de caixa nos primeiros nove meses de 2012.
Os investidores começaram a temer pela solvência da empresa, um problema grave não só para Molina, mas também para os credores privados (os principais são Itaú e Bradesco) e para o governo, que é criticado por conta do aporte de R$ 3,5 bilhões que o BNDES fez na empresa. O grupo, que já vinha tentando vender parte da Seara, cogitou abrir o capital dessa empresa, mas o BNDES não foi simpático à ideia.
Em um movimento arriscado, o Marfrig optou por aumentar o capital da holding controladora. A empresa aceitou vender suas ações a R$ 8 cada (valor bem abaixo do pico de R$ 23 que já atingiu), e captou R$ 1,05 bilhão. Também emitiu US$ 600 milhões em bonds, pagando juros mais altos que os concorrentes JBS e Minerva. "Apesar das taxas elevadas, a captação do Marfrig foi bem-sucedida", diz Mariana Waltz, analista sênior da Moody's.
Para convencer o mercado, Molina acelerou a profissionalização do grupo, atendendo um desejo antigo dos credores. Em novembro, anunciou que ficaria no conselho de administração, passando a presidência executiva para Rial em 2014. Segundo pessoas próximas, a transição tem sido "dolorosa" para o ex-açougueiro que construiu uma empresa com receita de mais de R$ 20 bilhões.
Além de ceder o comando, ele aceitou ser diluído no controle a um preço baixo: sua participação caiu de 49,6% para 38,6% com a oferta de ações. "O Marcos vai continuar sendo muito importante para a empresa, mas é uma questão de perfil. Ele conduziu o Marfrig até um certo porte", disse uma fonte com acesso aos credores e ao BNDES. Molina não concedeu entrevista.
Governo. O BNDES vem acompanhando em detalhes a reestruturação do Marfrig. Antes de assumir o cargo, Rial foi apresentado por Molina aos executivos do banco e mantém contatos frequentes com eles. Mesmo sem assento no conselho de administração, funcionários do BNDES se reuniram com o McDonald's, principal cliente da Keystone, filial do Marfrig nos EUA.
Segundo um assessor graduado da presidente Dilma, "o Marfrig está fazendo o que o BNDES manda". Fontes próximas ao banco negam ingerência, mas admitem que o BNDES está olhando de perto o Marfrig. "Não há ingerência de forma alguma, mas sempre tive um diálogo muito fluido com o BNDES. É o mínimo, porque são acionistas importantes e comprometeram o nome da instituição ao fazer uma aposta no setor", diz Rial.
O BNDES está sob artilharia da oposição, que ameaça abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar suas relações com o Marfrig. O principal alvo é a decisão do banco de antecipar a conversão de apenas R$ 350 milhões de suas debêntures, quando tinha direito de transformar toda a dívida, de R$2,5 bilhões, em ações. Quando o Marfrig realizou a oferta pública, o BNDES converteu essa pequena fatia a R$ 8 por ação. Em 2015, quando será obrigado a converter o restante, o preço, já estabelecido, será mais alto: R$ 24,50 por ação.
Fontes do governo justificam a atitude do BNDES dizendo que o banco não poderia ser "irresponsável e pular junto com a empresa no precipício", inviabilizando a oferta pública e impedindo a entrada de dinheiro novo. Essas fontes afirmam que Molina deixou claro que simplesmente não faria a oferta se o BNDES não limitasse a conversão de suas debêntures. O Marfrig nega.
Não é de hoje que o Marfrig vem apresentando problemas. A operação de resgate da empresa, com apoio do governo, já estava em curso antes do furacão do fim do ano passado. Em 2011, a empresa trocou ativos com a BRF e elevou sua capacidade de processamento. A BRF, resultado da fusão entre Sadia e Perdigão, foi obrigada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) a vender fábricas.
Preferência. Segundo uma fonte próxima às negociações entre as duas empresas, "estava evidente, desde o início, a preferência do governo para que a BRF fechasse com o Marfrig". A operação resolveria dois problemas: daria musculatura ao Marfrig para sair da crise, viabilizando uma chance de salvar o investimento do BNDES, e criaria uma rival nacional para competir com a BRF, referendando a decisão do Cade.
As negociações entre BRF e Marfrig quase naufragaram. Após a avaliação dos ativos, ficou estabelecido que o Marfrig teria de pagar R$ 350 milhões à BRF. Molina queria pagar tudo a prazo, enquanto José Antonio Fay, presidente da BRF, insistia em receber uma parte à vista. Fay jogou a toalha e disse que deixaria as fábricas irem a leilão. Molina, então, cedeu.
Pelo contrato, o Marfrig pagaria R$ 100 milhões à BRF entre junho e outubro de 2012, mas o pagamento atrasou e só foi quitado em dezembro, segundo Rial, "por divergências sobre a entrega dos ativos". Em agosto, o Marfrig recebeu um empréstimo da Caixa Econômica Federal de R$ 350 milhões, sem garantias reais. Segundo a empresa, trata-se de um empréstimo de capital de giro. Mas chegou justamente no momento em que o Marfrig precisava pagar à BRF.
Com os ativos da concorrente, a profissionalização e o endividamento de curto prazo resolvido, fontes próximas aos credores e ao BNDES apostam que o Marfrig está finalmente pronto para deslanchar, se "fizer o dever de casa". A reestruturação da empresa de Molina, uma das tarefas mais delicadas do mundo corporativo brasileiro, está hoje nas mãos de Rial.

Nenhum comentário: