Por Dr. Pedro Eduardo de Felício (Unicamp)
Introdução
Inicialmente, quero agradecer a gentileza do convite para falar sobre o posicionamento da carne brasileira no mercado internacional e, na sequência, pedir licença para tornar esse tema bem menos formal, já que o mercado muda muito rapidamente com as crises econômicas e com os surtos de doenças dos animais, que estão se tornando tão frequentes nos últimos tempos que até parecem ser o contraponto do inexorável processo de globalização da economia mundial.
Agora mesmo, os economistas falam numa desaceleração da economia global - a OECD - Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OECD vê perspectivas, 2011) acaba de anunciar que está revendo para baixo suas previsões de crescimento neste ano -, e a OIE - Organização Internacional de Epizootias (2011) registra surtos de febre aftosa em Israel, China, Botswana, República Democrática da Coreia entre outros e, também, surtos de Influenza aviária e Peste suína clássica e africana em algumas regiões. Tornar menos formal este tema seria, por exemplo, substituir o título por outro menos pretencioso, por exemplo: "O que dá para fazer com o que temos hoje no setor da carne".
E o que é que temos, no Brasil, no setor da carne?
Temos o maior rebanho bovino do mundo, 185 milhões, ou 205 milhões pelo IBGE, ocupando uma área enorme de pastagem, 171 milhões de ha, que já teria transferido 4% dessa área à agricultura, entre 1989 e 2008, segundo dados do MAPA (Gasques, Bastos, Bacchi, 2009), e tende a ceder uma extensão ainda maior e muito mais rapidamente do que se pode prever no momento, porque a demanda mundial por alimentos crescerá significativamente e, atualmente, a agricultura utiliza somente 50 milhões de ha. E é preciso considerar a competição crescente com as áreas que serão destinadas a reflorestamento e produção vegetal para os biocombustíveis (Aguiar, 2011).
Rodrigues (2011), citando relatório da FAO- OECD, afirma que "a demanda por alimentos no mundo crescerá 20%, pela combinação da expansão populacional e da renda per capita nos países emergentes - 85% do crescimento da população mundial ocorre neles". E acrescenta, "os aumentos de produção, para atender essa demanda ocorrerão nos países membros da União Europeia (4%); na América do Norte (até 15%); Rússia, China, Índia e Ucrânia (25%). Já o agronegócio do Brasil vai expandir a sua produção nos próximos 10 anos em nada menos do que 40%".
A produtividade dos pastos teria aumentado, no período 1989 - 2008, de 15,4 para 38,6 ou até mesmo 52,6 kg/ha, se incluídos no cálculo os dados estimativos de abates não inspecionados, que elevam para 9,12 milhões de TEq.C (tonelada equivalente carcaça) a produção nacional, e a capacidade de suporte teria atingido 1,1 UA/ha, mas, em contrapartida, o uso de fertilizantes teria triplicado, segundo a ABIEC (2010) com dados da CNA e SECEX, embora Barcellos, Ramos, Vilela, Martha Jr. (2008) estimem uma adubação anual da ordem de 2,9 a 3,6 kg/ha de fertilizantes NPK em 140 milhões de ha.
"A intensificação dos sistemas de produção pastoris é apontada como uma das alternativas de exploração sustentável, minimizando a pressão sobre a abertura de novas áreas para produção agropecuária. Esse modelo, entretanto, deverá ser pautado pelo uso eficiente dos recursos físicos, incluindo a recuperação de áreas antropizadas e degradadas, calcada no aporte de conhecimento e de tecnologias poupadoras de insumos" (Barcellos et al., 2008).
Temos uma indústria frigorífica de nível técnico variando de excelente a sofrível, operando com capacidade ociosa de 40% na média, e por isso mesmo, ou seja, por falta de gado para abate, estão fechando unidades, além das que já estavam paralisadas desde a crise de 2008/09, muitas das quais estão ou estiveram entre as mais bem planejadas do país.
Temos uma situação complicada no que tange aos abates não inspecionados ou com inspeção fantasiosa, nas mais diversas regiões geográficas, e políticos e autoridades federais, estaduais e municipais que convivem com isso como se o problema não existisse. Nos últimos dias, a imprensa noticiou duas situações preocupantes, em dois estados do Nordeste, mas há problemas semelhantes no país todo.
Os "sites" do agronegócio também noticiaram que a constatação da enormidade do abate informal neste país estava sendo usado pelas associações de pecuaristas norte-americanos para pressionar o governo dos EUA a não permitir importações de carne in natura do Brasil. É óbvio que era de se esperar que algo do gênero algum dia acontecesse, porque a imagem da indústria exportadora fica manchada pela incapacidade do país para resolver um problema crônico tão sério, mas governo e empresários insistem em não compreender isso.
Temos tecnologia de muito bom nível nos mais diversos segmentos da cadeia produtiva, da reprodução ao aproveitamento de subprodutos. Uma indústria de medicamentos veterinários/vacinas, e insumos em geral, especialmente suplementos nutricionais, capaz de atender a uma demanda gigantesca com produtos de qualidade comprovada.
Mercado interno
Temos em destaque um mercado interno enorme, que já consome 38 kg Eq.C (equivalente carcaça) ou 23 kg (63 g/dia) de carne sem osso per capita, sem contar as carnes salgadas, embutidos e miúdos, segundo pesquisa recente do IBGE (2011), onde também aparece que a carne bovina é consumida por 49% das pessoas em pelo menos um de dois dias do levantamento, só perdendo em frequência de consumo para o arroz, café, feijão e pão. Esse mercado passou uma transformação monumental na década passada, com a pirâmide social dando lugar a um losango (Figura 1), com aumento de 16 milhões de pessoas nas classes A e B (que agora respondem por 21% da população, ou seja, 42 milhões) e de 39 milhões na classe C (agora com mais de 100 milhões de pessoas ou 53% da população); os 25% restantes hoje se encontram nas classes D e E (48 milhões de brasileiros).
Transcrevo aqui um parágrafo que explica o que a mobilidade social recente - especialmente essa do período 2005 - 2010 - pode representar para a cadeia produtiva da carne. Está no blog de Otávio Juliato, como segue: "As classes A, principalmente, e B, já consomem uma quantia elevada de carne bovina, que se aproxima dos índices de consumo de países como Uruguai e Argentina, líderes mundiais no consumo per capita de carne bovina, ou seja, não vão aumentar seu consumo, mas vão consumir de modo diferente, privilegiando cortes mais nobres. Já a classe C, esta sim, pode aumentar e muito seu consumo de carne; tem o problema da inflação, que é sério e pode atrapalhar todo nosso raciocínio (...)" (Juliato, 2011).
Figura 1. Pirâmide social que se transforma em losango no período 2005 - 2010 com o crescimento das classes A, B e C. Fonte: Gianini (2010)
Mercado externo
Temos, por fim, uma importante presença no mercado internacional da carne. No período 2004 - 2010, o Brasil tornou-se líder mundial nas exportações de carne bovina, com volumes crescentes mesmo depois do surto de aftosa de outubro de 2005 (Figura 2).
Figura 2. Crescimento das exportações totais de carne bovina do Brasil, a partir de 1997, e da Austrália, que passou de líder mundial a segundo colocado, a partir de 2003, em mil TEq.C. Fonte: FAS/USDA (2007).
Entretanto, a partir de 2007, quando atinge o pico de 2,189 milhões de TEq.C, as exportações começam a sofrer uma queda que já é bem visível em 2008, e continua em declínio (Figura 3) no tocante a volumes, até 2009, com alguma perspectiva de recuperação em 2010, que não se verificou (1,596 milhão TEq.C em 2009 e 1,558 milhao TEq.C em 2010, FAS/USDA, 2011). Apesar da melhoria nos preços em dólares da tonelada exportada- cerca de 34% de jan. 2010 a jan. 2011 -, o câmbio ainda é bastante desfavorável atualmente para os exportadores.
Figura 3. Queda no volume de exportação de carne bovina do Brasil, e estagnação da produção de bezerros, a partir de 2007. Obs.: o início da recuperação prevista para 2010 não ocorreu. Fonte: FAS/USDA (2010)
Figura 4. Instabilidade da demanda no Oriente Médio, representado pelo Egito, e Rússia, em TEq.C. Fonte: cortesia Maria Gabriela Tonini - ABIEC.
Neste ano de 2011 tem havido sérios problemas com as exportações para o Oriente Médio e Rússia, que são grandes compradores da carne brasileira, no primeiro caso devido aos movimentos políticos e até mesmo guerra, no segundo caso por conta, provavelmente, de desentendimentos entre o governo russo e o nosso MAPA.
Há evidências recentes de que as instabilidades nesses mercados já estejam sendo superadas. O que parece mesmo difícil senão impossível é a reconquista pelo Brasil do mercado da União Europeia devido a uma barreira comercial disfarçada de sanitária por conta das dificuldades que o país teve para implantar a rastreabilidade do gado. Por conta disso, hoje a barreira funciona sob o nome de Lista Traces, que registra as fazendas habilitadas a exportar carne para aquele mercado.
O histórico de pressões para eliminar a concorrência da carne brasileira, na União Europeia, deve ter pelo menos 10 anos, mas foi no dia 19 de dezembro de 2007, que a Direção-geral da Saúde e da Proteção do Consumidor (DG-Sanco), cedeu a elas e decidiu introduzir "altas restrições e o controle sobre as importações de carne bovina do Brasil com o apoio do Comitê de Cadeia Produtiva de Alimentos e Saúde Animal.
Os estados-membros concordaram que, a partir de 31 de janeiro de 2008, só se permitirá a importação de carne de uma lista restrita, aprovada, de propriedades no Brasil que estejam plenamente alinhadas com as exigências e atinjam critérios estritos" (UE, 2008). Note-se que a exigência dessa lista é exclusivamente para o Brasil, nenhum outro país atende a esse requisito. Note-se também, que no mesmo ano em que a medida drástica foi decretada, Reino Unido e Irlanda, para dar dois exemplos críticos, somaram 92 casos diagnosticados de BSE - Bovine Spongiform Encephalopathy, e 60 casos em 2008 quando a medida entrou em vigor (OIE, 2011).
O mercado da União Europeia tem importância vital para a indústria da carne do Brasil, não pelas quantidades que os países-membro adquirem, mas pelos preços que pagam; para o comércio europeu também é muito interessante porque os supermercados conseguem atrair para as suas lojas os consumidores com os preços altamente competitivos da carne brasileira.
Figura 5. Queda no volume exportado como decorrência da perda do mercado da União Europeia, a partir de fev. 2008, em TEq.C. Fonte: cortesia Maria Gabriela Tonini - ABIEC.
Demanda mundial conforme as projeções da OECD-FAO
Como demonstrado no gráfico da OECD-FAO (2011) adaptado (Figura 6), os aumentos de produção (bovina, suína, aves e ovinos) ocorrerão predominantemente nos países em desenvolvimento, que serão responsáveis por cerca de 78% do volume adicional. O crescimento de produção se dará principalmente dos setores de aves e suínos, que em relação às carnes vermelhas, mais caras, têm as vantagens dos ciclos curtos de produção e maior eficiência alimenta.
Figura 6. Crescimento percentual da produção de carnes bovina, suína, aves e ovina, com a contribuição dos países em desenvolvimento totalizando 78% e os 22% restantes dos desenvolvido, por tipo de carne, entre 2011 e 2020. Adaptado de OECD Outlook 2011.
Nessa década, o consumo de carne será limitado em relação à década anterior por conta dos preços mais elevados e da desaceleração do crescimento populacional. O envelhecimento da população, combinado com uma crescente percepção do impacto da produção de carne sobre o ambiente poderá exercer algum efeito adverso na demanda, particularmente nos países desenvolvidos.
Considera-se também que os surtos de doenças como E. coli H7:O157 e Salmonella, combinados com episódios de contaminação de carne e do leite com substâncias químicas inaceitáveis (dioxina e melanina) podem, de certo modo, reduzir a confiança do consumidor. Mas, de qualquer modo, o maior consumo de carne virá pelo crescimento de renda, e a urbanização irá fortalecer o consumo de proteína animal nas economias emergentes à custa dos alimentos de origem vegetal. Espera-se que o crescimento da demanda virá de grandes economias como a da Ásia, América Latina e países exportadores de petróleo (Figura 7).
Figura 7 . Aumento da demanda de carnes, por região, entre 2010 e 2020 em Eq.C ou "ready to cook" para aves. Um crescimento de 60 milhões de toneladas é projetado para 2020, predominantemente na Ásia. Fonte: OECD Outlook 2011.
As exportações de carne bovina no período considerado no Outlook expandirão a uma taxa de 1,8% ao ano, comparada a 2,9% ao ano na década anterior. A expansão será liderada pelos EUA, Brasil e Canadá. O Brasil exportou volumes recordes em meados da década passada, após a queda brusca nas exportações de carne dos EUA e Canadá onde ocorreram casos de BSE. As exportações brasileiras desde então declinaram, mas irão crescer na presente década mesmo com o crescente consumo doméstico induzido pelo aumento da renda per capita, porque o país tirará proveito de suas extensas áreas de pastagens numa época de elevados custos de ração.
O Brasil estabelecerá sua posição como líder mundial de exportações, com o volume em 2020 atingindo 2 milhões de toneladas, e os EUA continuarão expandindo suas exportações pela melhoria no mercado do Pacífico. Antecipa-se que os volumes exportados pelos EUA ao final da década será maior que os registrados antes da crise de BSE, ao final de 2003. Os EUA exportam a preços elevados para países não aftósicos, como Japão e Coréia do Sul, Canadá e México, e importa carne para processamento a preços bem inferiores, de países que erradicaram a aftosa.
O que dá para fazer com o que temos
O que está sendo feito pela indústria da carne bovina brasileira - pecuária, frigoríficos, fornecedores de insumos e comércio - já é um feito grandioso em si; atualmente, o mundo todo reconhece isso. Mas é preciso investir na recuperação das pastagens e no melhoramento genético animal e vegetal, de modo a continuar produzindo boi a pasto com alguma suplementação, semiconfinamento, e até confinamento, com incrementos de produtividade por hectare e por animal. Há especialistas no país que poderiam participar ativamente da elaboração de um planejamento a respeito das medidas necessárias.
É preciso dar combate sem tréguas ao abate ilegal porque não fosse pelo mal que ocasiona à saúde pública, o prejuízo econômico que ele traz aos cofres públicos e o atraso que representa para a sociedade, seriam suficientes para justificar a criação de núcleos de polícia sanitária em cada estado, apoiados na autoridade dos fiscais agropecuários federais e no ministério público, para planejar e executar ações destinadas a cortar o oxigênio que irriga as veias da clandestinidade, como falsas guias de trânsito animal e documentos ilícitos para emissão de notas fiscais que permitem o transporte e comércio de couros. Esses núcleos teriam prazo de cinco anos, renováveis por mais cinco, para apresentarem resultados auditáveis semestralmente.
É absolutamente necessário investir na criação de uma agência de defesa sanitária animal, inspeção e inocuidade de alimentos de origem animal e controle de medicamentos de uso veterinário, que tenha a autonomia política que um banco central tem ou deveria ter setor financeiro, para definir suas atividades. Isto significaria esvaziar a Secretaria de Defesa Agropecuária do MAPA? Não necessariamente, todas as atividades burocráticas deveriam ficar na SDA, inclusive a administração do funcionalismo, para que o novo organismo seja leve e desburocratizado desde o nascedouro. Bem, obviamente um projeto dessa natureza exige estudos feitos por quem entende de administração pública, mas é importante que a alta direção da agência fique nas mãos de profissionais pós-graduados comprometidos com a ciência. O importante mesmo é criar um organismo de interesse público, livre de pressões políticas e de interesses escusos, ágil e inteligente como exigem os tempos modernos.
Finalmente, mas não menos importante, pois o próprio governo atual já definiu, de maneira generalizada, como prioritário para o Ministério de Ciência e Tecnologia, um programa de treinamento em nível de pós-graduação - mestrado e doutorado - de centenas de profissionais de saúde animal, inspeção e inocuidade dos alimentos de origem animal, em instituições de pesquisa de países que são muito fortes nesse setor. Muitos desses profissionais deveriam ser contratados na volta ao país e alocados em instituições conveniadas com a agência referida anteriormente.
Agradecimentos
À médica veterinária Maria Gabriela Tonini, da Coordenação Técnica da ABIEC, em São Paulo, SP, e ao doutorando Sérgio Bertelli Pflanzer Jr., pela ajuda na elaboração de gráficos apresentados neste texto.
Fonte: I Simpósio Internacional de Avaliação Animal e Qualidade da Carne, realizado na USP - Pirassununga nos dias 28, 29 e 30 de setembro/2011. Disponibilizado pelo prof. Dr. Pedro Eduardo de Felício (Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp).
Introdução
Inicialmente, quero agradecer a gentileza do convite para falar sobre o posicionamento da carne brasileira no mercado internacional e, na sequência, pedir licença para tornar esse tema bem menos formal, já que o mercado muda muito rapidamente com as crises econômicas e com os surtos de doenças dos animais, que estão se tornando tão frequentes nos últimos tempos que até parecem ser o contraponto do inexorável processo de globalização da economia mundial.
Agora mesmo, os economistas falam numa desaceleração da economia global - a OECD - Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OECD vê perspectivas, 2011) acaba de anunciar que está revendo para baixo suas previsões de crescimento neste ano -, e a OIE - Organização Internacional de Epizootias (2011) registra surtos de febre aftosa em Israel, China, Botswana, República Democrática da Coreia entre outros e, também, surtos de Influenza aviária e Peste suína clássica e africana em algumas regiões. Tornar menos formal este tema seria, por exemplo, substituir o título por outro menos pretencioso, por exemplo: "O que dá para fazer com o que temos hoje no setor da carne".
E o que é que temos, no Brasil, no setor da carne?
Temos o maior rebanho bovino do mundo, 185 milhões, ou 205 milhões pelo IBGE, ocupando uma área enorme de pastagem, 171 milhões de ha, que já teria transferido 4% dessa área à agricultura, entre 1989 e 2008, segundo dados do MAPA (Gasques, Bastos, Bacchi, 2009), e tende a ceder uma extensão ainda maior e muito mais rapidamente do que se pode prever no momento, porque a demanda mundial por alimentos crescerá significativamente e, atualmente, a agricultura utiliza somente 50 milhões de ha. E é preciso considerar a competição crescente com as áreas que serão destinadas a reflorestamento e produção vegetal para os biocombustíveis (Aguiar, 2011).
Rodrigues (2011), citando relatório da FAO- OECD, afirma que "a demanda por alimentos no mundo crescerá 20%, pela combinação da expansão populacional e da renda per capita nos países emergentes - 85% do crescimento da população mundial ocorre neles". E acrescenta, "os aumentos de produção, para atender essa demanda ocorrerão nos países membros da União Europeia (4%); na América do Norte (até 15%); Rússia, China, Índia e Ucrânia (25%). Já o agronegócio do Brasil vai expandir a sua produção nos próximos 10 anos em nada menos do que 40%".
A produtividade dos pastos teria aumentado, no período 1989 - 2008, de 15,4 para 38,6 ou até mesmo 52,6 kg/ha, se incluídos no cálculo os dados estimativos de abates não inspecionados, que elevam para 9,12 milhões de TEq.C (tonelada equivalente carcaça) a produção nacional, e a capacidade de suporte teria atingido 1,1 UA/ha, mas, em contrapartida, o uso de fertilizantes teria triplicado, segundo a ABIEC (2010) com dados da CNA e SECEX, embora Barcellos, Ramos, Vilela, Martha Jr. (2008) estimem uma adubação anual da ordem de 2,9 a 3,6 kg/ha de fertilizantes NPK em 140 milhões de ha.
"A intensificação dos sistemas de produção pastoris é apontada como uma das alternativas de exploração sustentável, minimizando a pressão sobre a abertura de novas áreas para produção agropecuária. Esse modelo, entretanto, deverá ser pautado pelo uso eficiente dos recursos físicos, incluindo a recuperação de áreas antropizadas e degradadas, calcada no aporte de conhecimento e de tecnologias poupadoras de insumos" (Barcellos et al., 2008).
Temos uma indústria frigorífica de nível técnico variando de excelente a sofrível, operando com capacidade ociosa de 40% na média, e por isso mesmo, ou seja, por falta de gado para abate, estão fechando unidades, além das que já estavam paralisadas desde a crise de 2008/09, muitas das quais estão ou estiveram entre as mais bem planejadas do país.
Temos uma situação complicada no que tange aos abates não inspecionados ou com inspeção fantasiosa, nas mais diversas regiões geográficas, e políticos e autoridades federais, estaduais e municipais que convivem com isso como se o problema não existisse. Nos últimos dias, a imprensa noticiou duas situações preocupantes, em dois estados do Nordeste, mas há problemas semelhantes no país todo.
Os "sites" do agronegócio também noticiaram que a constatação da enormidade do abate informal neste país estava sendo usado pelas associações de pecuaristas norte-americanos para pressionar o governo dos EUA a não permitir importações de carne in natura do Brasil. É óbvio que era de se esperar que algo do gênero algum dia acontecesse, porque a imagem da indústria exportadora fica manchada pela incapacidade do país para resolver um problema crônico tão sério, mas governo e empresários insistem em não compreender isso.
Temos tecnologia de muito bom nível nos mais diversos segmentos da cadeia produtiva, da reprodução ao aproveitamento de subprodutos. Uma indústria de medicamentos veterinários/vacinas, e insumos em geral, especialmente suplementos nutricionais, capaz de atender a uma demanda gigantesca com produtos de qualidade comprovada.
Mercado interno
Temos em destaque um mercado interno enorme, que já consome 38 kg Eq.C (equivalente carcaça) ou 23 kg (63 g/dia) de carne sem osso per capita, sem contar as carnes salgadas, embutidos e miúdos, segundo pesquisa recente do IBGE (2011), onde também aparece que a carne bovina é consumida por 49% das pessoas em pelo menos um de dois dias do levantamento, só perdendo em frequência de consumo para o arroz, café, feijão e pão. Esse mercado passou uma transformação monumental na década passada, com a pirâmide social dando lugar a um losango (Figura 1), com aumento de 16 milhões de pessoas nas classes A e B (que agora respondem por 21% da população, ou seja, 42 milhões) e de 39 milhões na classe C (agora com mais de 100 milhões de pessoas ou 53% da população); os 25% restantes hoje se encontram nas classes D e E (48 milhões de brasileiros).
Transcrevo aqui um parágrafo que explica o que a mobilidade social recente - especialmente essa do período 2005 - 2010 - pode representar para a cadeia produtiva da carne. Está no blog de Otávio Juliato, como segue: "As classes A, principalmente, e B, já consomem uma quantia elevada de carne bovina, que se aproxima dos índices de consumo de países como Uruguai e Argentina, líderes mundiais no consumo per capita de carne bovina, ou seja, não vão aumentar seu consumo, mas vão consumir de modo diferente, privilegiando cortes mais nobres. Já a classe C, esta sim, pode aumentar e muito seu consumo de carne; tem o problema da inflação, que é sério e pode atrapalhar todo nosso raciocínio (...)" (Juliato, 2011).
Figura 1. Pirâmide social que se transforma em losango no período 2005 - 2010 com o crescimento das classes A, B e C. Fonte: Gianini (2010)
Mercado externo
Temos, por fim, uma importante presença no mercado internacional da carne. No período 2004 - 2010, o Brasil tornou-se líder mundial nas exportações de carne bovina, com volumes crescentes mesmo depois do surto de aftosa de outubro de 2005 (Figura 2).
Figura 2. Crescimento das exportações totais de carne bovina do Brasil, a partir de 1997, e da Austrália, que passou de líder mundial a segundo colocado, a partir de 2003, em mil TEq.C. Fonte: FAS/USDA (2007).
Entretanto, a partir de 2007, quando atinge o pico de 2,189 milhões de TEq.C, as exportações começam a sofrer uma queda que já é bem visível em 2008, e continua em declínio (Figura 3) no tocante a volumes, até 2009, com alguma perspectiva de recuperação em 2010, que não se verificou (1,596 milhão TEq.C em 2009 e 1,558 milhao TEq.C em 2010, FAS/USDA, 2011). Apesar da melhoria nos preços em dólares da tonelada exportada- cerca de 34% de jan. 2010 a jan. 2011 -, o câmbio ainda é bastante desfavorável atualmente para os exportadores.
Figura 3. Queda no volume de exportação de carne bovina do Brasil, e estagnação da produção de bezerros, a partir de 2007. Obs.: o início da recuperação prevista para 2010 não ocorreu. Fonte: FAS/USDA (2010)
Figura 4. Instabilidade da demanda no Oriente Médio, representado pelo Egito, e Rússia, em TEq.C. Fonte: cortesia Maria Gabriela Tonini - ABIEC.
Neste ano de 2011 tem havido sérios problemas com as exportações para o Oriente Médio e Rússia, que são grandes compradores da carne brasileira, no primeiro caso devido aos movimentos políticos e até mesmo guerra, no segundo caso por conta, provavelmente, de desentendimentos entre o governo russo e o nosso MAPA.
Há evidências recentes de que as instabilidades nesses mercados já estejam sendo superadas. O que parece mesmo difícil senão impossível é a reconquista pelo Brasil do mercado da União Europeia devido a uma barreira comercial disfarçada de sanitária por conta das dificuldades que o país teve para implantar a rastreabilidade do gado. Por conta disso, hoje a barreira funciona sob o nome de Lista Traces, que registra as fazendas habilitadas a exportar carne para aquele mercado.
O histórico de pressões para eliminar a concorrência da carne brasileira, na União Europeia, deve ter pelo menos 10 anos, mas foi no dia 19 de dezembro de 2007, que a Direção-geral da Saúde e da Proteção do Consumidor (DG-Sanco), cedeu a elas e decidiu introduzir "altas restrições e o controle sobre as importações de carne bovina do Brasil com o apoio do Comitê de Cadeia Produtiva de Alimentos e Saúde Animal.
Os estados-membros concordaram que, a partir de 31 de janeiro de 2008, só se permitirá a importação de carne de uma lista restrita, aprovada, de propriedades no Brasil que estejam plenamente alinhadas com as exigências e atinjam critérios estritos" (UE, 2008). Note-se que a exigência dessa lista é exclusivamente para o Brasil, nenhum outro país atende a esse requisito. Note-se também, que no mesmo ano em que a medida drástica foi decretada, Reino Unido e Irlanda, para dar dois exemplos críticos, somaram 92 casos diagnosticados de BSE - Bovine Spongiform Encephalopathy, e 60 casos em 2008 quando a medida entrou em vigor (OIE, 2011).
O mercado da União Europeia tem importância vital para a indústria da carne do Brasil, não pelas quantidades que os países-membro adquirem, mas pelos preços que pagam; para o comércio europeu também é muito interessante porque os supermercados conseguem atrair para as suas lojas os consumidores com os preços altamente competitivos da carne brasileira.
Figura 5. Queda no volume exportado como decorrência da perda do mercado da União Europeia, a partir de fev. 2008, em TEq.C. Fonte: cortesia Maria Gabriela Tonini - ABIEC.
Demanda mundial conforme as projeções da OECD-FAO
Como demonstrado no gráfico da OECD-FAO (2011) adaptado (Figura 6), os aumentos de produção (bovina, suína, aves e ovinos) ocorrerão predominantemente nos países em desenvolvimento, que serão responsáveis por cerca de 78% do volume adicional. O crescimento de produção se dará principalmente dos setores de aves e suínos, que em relação às carnes vermelhas, mais caras, têm as vantagens dos ciclos curtos de produção e maior eficiência alimenta.
Figura 6. Crescimento percentual da produção de carnes bovina, suína, aves e ovina, com a contribuição dos países em desenvolvimento totalizando 78% e os 22% restantes dos desenvolvido, por tipo de carne, entre 2011 e 2020. Adaptado de OECD Outlook 2011.
Nessa década, o consumo de carne será limitado em relação à década anterior por conta dos preços mais elevados e da desaceleração do crescimento populacional. O envelhecimento da população, combinado com uma crescente percepção do impacto da produção de carne sobre o ambiente poderá exercer algum efeito adverso na demanda, particularmente nos países desenvolvidos.
Considera-se também que os surtos de doenças como E. coli H7:O157 e Salmonella, combinados com episódios de contaminação de carne e do leite com substâncias químicas inaceitáveis (dioxina e melanina) podem, de certo modo, reduzir a confiança do consumidor. Mas, de qualquer modo, o maior consumo de carne virá pelo crescimento de renda, e a urbanização irá fortalecer o consumo de proteína animal nas economias emergentes à custa dos alimentos de origem vegetal. Espera-se que o crescimento da demanda virá de grandes economias como a da Ásia, América Latina e países exportadores de petróleo (Figura 7).
Figura 7 . Aumento da demanda de carnes, por região, entre 2010 e 2020 em Eq.C ou "ready to cook" para aves. Um crescimento de 60 milhões de toneladas é projetado para 2020, predominantemente na Ásia. Fonte: OECD Outlook 2011.
As exportações de carne bovina no período considerado no Outlook expandirão a uma taxa de 1,8% ao ano, comparada a 2,9% ao ano na década anterior. A expansão será liderada pelos EUA, Brasil e Canadá. O Brasil exportou volumes recordes em meados da década passada, após a queda brusca nas exportações de carne dos EUA e Canadá onde ocorreram casos de BSE. As exportações brasileiras desde então declinaram, mas irão crescer na presente década mesmo com o crescente consumo doméstico induzido pelo aumento da renda per capita, porque o país tirará proveito de suas extensas áreas de pastagens numa época de elevados custos de ração.
O Brasil estabelecerá sua posição como líder mundial de exportações, com o volume em 2020 atingindo 2 milhões de toneladas, e os EUA continuarão expandindo suas exportações pela melhoria no mercado do Pacífico. Antecipa-se que os volumes exportados pelos EUA ao final da década será maior que os registrados antes da crise de BSE, ao final de 2003. Os EUA exportam a preços elevados para países não aftósicos, como Japão e Coréia do Sul, Canadá e México, e importa carne para processamento a preços bem inferiores, de países que erradicaram a aftosa.
O que dá para fazer com o que temos
O que está sendo feito pela indústria da carne bovina brasileira - pecuária, frigoríficos, fornecedores de insumos e comércio - já é um feito grandioso em si; atualmente, o mundo todo reconhece isso. Mas é preciso investir na recuperação das pastagens e no melhoramento genético animal e vegetal, de modo a continuar produzindo boi a pasto com alguma suplementação, semiconfinamento, e até confinamento, com incrementos de produtividade por hectare e por animal. Há especialistas no país que poderiam participar ativamente da elaboração de um planejamento a respeito das medidas necessárias.
É preciso dar combate sem tréguas ao abate ilegal porque não fosse pelo mal que ocasiona à saúde pública, o prejuízo econômico que ele traz aos cofres públicos e o atraso que representa para a sociedade, seriam suficientes para justificar a criação de núcleos de polícia sanitária em cada estado, apoiados na autoridade dos fiscais agropecuários federais e no ministério público, para planejar e executar ações destinadas a cortar o oxigênio que irriga as veias da clandestinidade, como falsas guias de trânsito animal e documentos ilícitos para emissão de notas fiscais que permitem o transporte e comércio de couros. Esses núcleos teriam prazo de cinco anos, renováveis por mais cinco, para apresentarem resultados auditáveis semestralmente.
É absolutamente necessário investir na criação de uma agência de defesa sanitária animal, inspeção e inocuidade de alimentos de origem animal e controle de medicamentos de uso veterinário, que tenha a autonomia política que um banco central tem ou deveria ter setor financeiro, para definir suas atividades. Isto significaria esvaziar a Secretaria de Defesa Agropecuária do MAPA? Não necessariamente, todas as atividades burocráticas deveriam ficar na SDA, inclusive a administração do funcionalismo, para que o novo organismo seja leve e desburocratizado desde o nascedouro. Bem, obviamente um projeto dessa natureza exige estudos feitos por quem entende de administração pública, mas é importante que a alta direção da agência fique nas mãos de profissionais pós-graduados comprometidos com a ciência. O importante mesmo é criar um organismo de interesse público, livre de pressões políticas e de interesses escusos, ágil e inteligente como exigem os tempos modernos.
Finalmente, mas não menos importante, pois o próprio governo atual já definiu, de maneira generalizada, como prioritário para o Ministério de Ciência e Tecnologia, um programa de treinamento em nível de pós-graduação - mestrado e doutorado - de centenas de profissionais de saúde animal, inspeção e inocuidade dos alimentos de origem animal, em instituições de pesquisa de países que são muito fortes nesse setor. Muitos desses profissionais deveriam ser contratados na volta ao país e alocados em instituições conveniadas com a agência referida anteriormente.
Agradecimentos
À médica veterinária Maria Gabriela Tonini, da Coordenação Técnica da ABIEC, em São Paulo, SP, e ao doutorando Sérgio Bertelli Pflanzer Jr., pela ajuda na elaboração de gráficos apresentados neste texto.
Fonte: I Simpósio Internacional de Avaliação Animal e Qualidade da Carne, realizado na USP - Pirassununga nos dias 28, 29 e 30 de setembro/2011. Disponibilizado pelo prof. Dr. Pedro Eduardo de Felício (Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp).
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