terça-feira, 16 de outubro de 2012

Consumo. Um negócio da China?


Edgar Morin, um dos pensadores mais importantes do século XX, lança um alerta quando afirma que “a ciência econômica é a ciência humana mais sofisticada e a mais formalizada”, entretanto, “a política econômica é a mais incapaz de perceber o que não é quantificável, ou seja, as paixões e as necessidades humanas” . Essa afirmação, vinda de quem vem, merece de nós certa atenção.
O Fórum de Lideranças Educacionais, ocorrido em outubro de 2012, em Belo Horizonte, teve como tema Brasil: Desafios e Oportunidades. A palestra de abertura ficou a cargo de um jornalista e comentarista econômico bem conhecido, que utilizou de vários dados e gráficos para abordar o tema em questão, sempre tendo como pano de fundo a crise econômica mundial. Adianto que sou leiga nesse assunto. Pretendo apenas apresentar a forma como uma educadora se apropriou de parte da exposição. Ressalto que escutei, tendo os pés fincados na escola. É deste lugar, e tendo em minha mente a formação humana e ampla de crianças e jovens, que faço algumas reflexões.
Durante a exposição teve destaque o movimento de retração no crescimento mundial, juntamente com o antídoto para tal tragédia: “é preciso voltar às compras!”. Essa é a palavra de ordem. Como os EUA importam tudo, e de todos os lugares, espera-se, falando um português bem claro, que “o americano cumpra seu dever sagrado de ir às compras”. Não só o norte-americano, mas, o brasileiro também recebe esse incentivo. Para o modelo de desenvolvimento atual, a saúde de uma economia é medida pelo poder de compra dos cidadãos. Muitos devem se lembrar das medidas do governo brasileiro de incentivo à indústria automobilística, ao agronegócio, e da redução do IPI para eletrodomésticos da linha branca. De acordo com essa política, o consumismo deixa de ser malvisto e se transforma em boa ação.
Não considero normal essa orientação. Naturalizamos a corrida frenética rumo ao novo, ao mais moderno, ou de última geração. É preciso quase que pedir desculpas ou dar explicações por não trocar de carro, portar um celular do semestre passado ou repetir a roupa da última festa. Aliás, as roupas não mais envelhecem. Não dá mais tempo. A solução para quem quer algo desbotado é comprar já com “efeito envelhecido” ou com os rasgos que imitam uma peça que tem um dono com histórias de aventura para contar. É importante dizer aos mais novos que nem sempre foi assim. A austeridade que, antes era ensinada como virtude, hoje virou defeito.
Durante a exposição foi dito que a ampliação da oferta chinesa de bens industrializados, acompanhada da retração de sua agricultura, reduziu o preço internacional desses bens e elevou o dos primários. O Brasil então comparece e desponta no cenário mundial com aquilo que tem de sobra e que falta no mundo: florestas, rios, minérios e terra a perder de vista. Entre 2001 e 2011, houve uma valorização de quase 260% nos preços das exportações de bens primários (minérios, combustíveis, alimentos etc.). Quando se fala em “alimento”, lê-se: açúcar, algodão, arroz, bezerro, boi, café, milho e soja. Notaram que o bezerro e o boi estão juntos com o açúcar? A conta é mais ou menos esta e isso foi dito: “se cada chinês comer uma bisteca por dia, o lucro será de X dólares por ano”. Logo que ouvi essa equação me veio à mente o relatório publicado em 2006 pela FAO (ONU) – A grande sombra da pecuária (Livestock´s long Shadow[i]), que reforça a relação entre a pecuária e as mudanças climáticas, sendo ela responsável por cerca de 18% da emissão dos gases de efeito estufa. Uma contribuição maior que a do setor de transportes, que é de cerca de 15%. Não se trata apenas do CO2. Segundo esse mesmo relatório, a produção bovina é responsável por cerca de 35% a 40% das emissões de metano, que é 21 vezes mais prejudicial que o gás carbônico (CO2). O relatório sugere algumas formas de amenizar a “sombra da pecuária”, mas sendo o Brasil um dos maiores produtores e exportadores de carne do mundo, e sendo nossa pecuária extensiva, teremos que driblar outro grande problema que é o desmatamento.
Em setembro de 2012, o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) publicou que a pecuária responde por 62% do desmatamento da Amazônia e que a agricultura é responsável apenas por 5% (o índice pode ser maior, já que, devido às nuvens, nem sempre os satélites captam todas as áreas)[ii]. Aqui é preciso considerar que, nos 5% da agricultura, não estamos falando exatamente de alimentos para pessoas. O mesmo relatório da FAO apontou que, não somente as pastagens, mas os grãos utilizados nas rações de animais estão, a cada dia, ocupando local onde antes havia grandes florestas. Entre os anos de 1994 e 2004, a área ocupada para o plantio de soja na América Latina praticamente dobrou, chegando a 39 milhões de hectares, com grandes áreas ocupadas pela monocultura.
Cruzando esses dados, lembrei-me também do didático infográfico publicado pelo estadao.com.br, no qual Maurício Waldman apresenta o mapa do lixo produzido no mundo. Aqui também a pecuária consta como a segunda maior produtora de lixo do mundo (39%), ficando atrás somente da mineração (39%)[iii]. Para todos esses problemas hão de encontrar solução e não faltarão grupos interessados em investir grande soma de dinheiro nessa indústria e no aprimoramento da tecnologia que retira o máximo do animal, no menor espaço e no menor tempo possível. Afinal, a esteira da indústria e a economia não podem parar.
A resposta da Associação Brasileira da Indústria Exportadora de Carnes (ABIEC) e de outros setores ligados à industria da carne, dada a esse relatório, é que há soluções para esses problemas e a inspiração vem dos Estados Unidos. Lá se verifica maior eficiência nos processos, alta tecnologia empregada, intensificação (confinamento do rebanho), sendo possível, inclusive, “abater animais mais jovens”. Com essa tecnologia, os EUA “conseguem, com um rebanho que é metade do nosso, produzir mais carne que nós”[iv].
Concluo minha contribuição em torno da palavra “alimento” com outro documento que não pode faltar. Trata-se de um manifesto publicado em 07 de julho de 2012, em Cambridge – Reino Unido, e assinado por pesquisadores renomados, inclusive com o apoio do físico Stephen Hawking, no qual concluem que “os seres humanos não detêm o monopólio da consciência e que há um corpo razoável de evidências científicas que sustentam estados conscientes em uma variedade de animais não humanos”. Essa noção, sim, é bem desconfortável, pois distancia os seres, bezerro e boi, do alimento, açúcar e do café. O que esse manifesto de Cambridge endossa é que o boi, o bezerro, o frango, o porco ou a vaca, que estão sendo cientificamente manipulados e completamente alterados em sua natureza, não são peças inertes, mas seres sencientes, com vida e com vontade de viver; e isso, sim, tem implicações éticas e morais que não se resolvem aumentando a eficiência técnica.
Nada contra os dados e cifras que nos foram apresentados. Sabemos que, por si mesmos “dados não falam”, mas que estão lá para responder às nossas perguntas, que dependem do nosso método de questionamento. Aí sim, eles podem falar. E muito.
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MORIN, Edgar. A cabeça bem feita (17ª Ed.) Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
[iii] http://www.estadao.com.br/especiais/de-onde-vem-o-lixo-produzido-no-mundo,148028.htm . Autoria do infográfico é de Maurício Waldman, Mestre em Antropologia Social (USP); Doutor em Geografia Humana (USP) e Pós-Doutor em Resíduos Sólidos (UNICAMP)
[iv] Fonte: http://www.abiec.com.br em textos assinados por Fernando Sampaio, Diretor e Coordenador de Sustentabilidade da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec).

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