O avanço genético na pecuária está transformando a carne brasileira. Graças à genética, o rebanho está melhorando, e a carne já não é tão dura
São Paulo - A história da pecuária no Brasil pode ser dividida em dois ciclos. O primeiro começou no século 16, quando bois foram trazidos para o país para mover engenhos de açúcar. Foi no século 20 que começou o segundo ciclo, aquele que transformou o Brasil no maior exportador de carne do mundo.
Nessa hora, um personagem foi fundamental — o gado zebu, como o nelore, aquele de pelo branco com uma corcova às costas, que, originário da Índia, adaptou-se perfeitamente ao calorão do Centro-Oeste brasileiro. Com a conquista da região e uma raça pau para toda obra, o rebanho se multiplicou.
O porém do zebu sempre surge na hora em que a carne chega ao prato: os bifes extraídos dos animais de origem asiática não são exatamente top de linha. É por isso que os turistas brasileiros se maravilham quando comem seu primeiro bife de chorizo na Argentina. O gado por lá é, sobretudo, da raça escocesa angus, que se dá bem em climas frios e tem, por diversas razões, uma carne melhor.
Quem volta ao Brasil para o contrafilé do dia a dia acaba repetindo a velha pergunta feita antes por milhões de turistas em situação parecida: quando o Brasil vai ter uma carne tão boa? Felizmente, há sinais de que a pecuária brasileira está entrando num novo ciclo — nossa carne, finalmente, começou a melhorar.
A responsável por isso é a genética. Há dez anos, um grupo de criadores nacionais começou a cruzar espécimes dos gados nelore e angus. O objetivo da empreitada era chegar a um gado com a resistência do primeiro e a carne quase tão boa do segundo. Aos poucos, foi dando certo.
O DNA escocês, que até então só prosperava no sul, espalhou-se pelas regiões Sudeste e Centro-Oeste. O número de abates anuais cresceu 20 vezes em dez anos. E as vendas de sêmen da raça saíram de zero para mais de 3 milhões de doses por ano. Em 2013, nove em dez bezerros gerados em cruzamentos industriais por aqui terão sangue angus. Hoje, esse rebanho representa 5% do total no país. E o número tende a crescer dramaticamente.
Gordura entremeada
Talvez a principal diferença entre o novo boi brasileiro e o velho zebu de sempre esteja na parte dianteira, de onde se extrai a chamada carne “de segunda”.
Cortes nobres de zebu, como o filé-mignon ou a picanha (extraídos da metade traseira), são macios, é verdade — embora não tenham o sabor conferido pela gordura entremeada, típica de raças britânicas, como angus e hereford. Mas a coisa complica mesmo nos cortes dianteiros, como acém e paleta.
Tudo isso se tornou, no Brasil, aquele tipo de carne que o cozinheiro joga na panela e só tira após horas de muita reza — sempre na esperança de que a longa exposição ao calor tenha destruído as fibras (ponto em que a carne “desmancha”). Com a chegada da nova genética, isso muda.
A gordura entremeada melhora, sim, os cortes nobres. Mas o principal salto se dá nos acéns da vida. “Todas as carnes de angus podem ser de primeira”, afirma o especialista István Wessel, dono da grife de carnes Wessel. “Desde que o churrasqueiro também seja.”
As empresas têm alardeado o avanço da carne angus nos supermercados — e cobrado, claro, mais caro por ela. Os preços são cerca de 30% maiores. O frigorífico Marfrig vende mais de dez cortes de carne angus: até mesmo bifes de patinho e coxão duro, algo impensável com a carne típica brasileira.
O Friboi, maior do país, fechou em outubro acordos para distribuição de carne certificada pela Associação Brasileira de Angus e com produtores de hereford. O McDonald’s tem dois sanduíches com carne angus em seu cardápio. A rede Outback, que há poucos anos importava todos os cortes especiais que servia, hoje encontra 70% do que precisa no Brasil. Na churrascaria Fogo de Chão, o afamado steak shoulder não é nada mais do que um corte de miolo de paleta na grelha.
Apesar dos avanços recentes, ainda há um longo caminho para que a carne média brasileira esteja entre as melhores do mundo. A mistura com o nelore sempre vai tirar algo do gosto característico do angus.
Os carnívoros mais tinhosos sempre dirão que falta ao gado mestiço o “buquê do pampa” — uma referência aos sabores típicos do angus puro criado no friozinho das planícies deUruguai, Argentina e Rio Grande do Sul. Mas talvez a ambição nem deva ser essa, já que um boi angus jamais sobreviverá à vida dura do cerrado.
A evolução do gado brasileiro, dentro dos limites do possível, é uma ótima notícia. Que merece ser comemorada com um churrasco de acém.
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