segunda-feira, 27 de junho de 2011

Reflexões sobre a carne

Reprodução permitida desde que citada a fonte
Não repare no texto reflexivo de hoje, caro leitor. Estou no Tocantins, sozinho, na fazenda, sem minha querida esposa, sem meus filhos, comprando boi magro, vendendo boi gordo, fazendo a contagem geral e pesagem do gado (fazemos quatro dessas por ano) e verificando as coisas como elas estão.

Há uns oito anos não assisto TV, caro leitor. Isso por si só gera uma quantidade enorme de tempo disponível para ler - estou lendo atualmente o livro que ganhou o prêmio Pulitzer “O Petróleo”, de Daniel Yergin. Tenho tempo para refletir também, e uma destas reflexões gerou o que segue.

Provavelmente na rodinha de bate papo lá dos colegas da pecuária, no leilão, no campeonato de laço dos filhos, naquele churrasco de aniversário ou até mesmo nas feiras pecuárias, sejam os fazendeiros ou o pessoal das corretoras ou também o corretor de boi magro. Não importa, provavelmente o principal tópico da conversa será o preço da arroba do boi e para onde ela vai, se choveu na fazenda, como estão seus pastos, como é que está a reposição, o que vai ter de boi confinado este ano e descer a lenha nos frigoríficos.

Este último item me chamou a atenção. Descer a lenha nos frigoríficos. É claro que ninguém é perfeito - existem diferenças entre rendimentos de carcaça entre as plantas, isso é fato, consigo nos próprios abates mostrar isso com clareza, mas tirando isso, o que é que o povo pega tanto? Que bobagem. Olhe um frigorífico de longe, afaste-se do cenário e veja os três setores. Frigorífico é o sujeito ensanduichado entre duas forças poderosíssimas, caro leitor. A primeira é quem possui o estoque, os pecuaristas. A segunda é quem acessa o consumidor final, o supermercado (doméstico e externo).

Esqueça aqui a posição societária dos frigoríficos. Isso não é relevante para nossa análise. Estou falando estritamente da operação de comprar boi, abater, estocar na câmara fria, vender para atacadista ou supermercado.

Agora pare e pense na situação. O frigorífico fica ali no meio, tentando se equilibrar e ganhar dinheiro, usando a diferença entre a oferta do primeiro e a demanda do segundo como seu metiê. Obviamente, por ser um mercado dos mais difíceis de ganhar dinheiro, os frigoríficos sobreviventes possuem o pessoal mais técnico do setor e é esse pessoal que mais entende de mercado no curto prazo. A visão deles é melhor, admito, que a do pecuarista em uma, duas semanas no futuro.

Porém, a gente se iguala no longo prazo. Meu amigo, frigorífico e pecuarista dispõem das mesmas informações quando se enxerga o mercado com mais de 30, 60 dias para frente. Ou seja, ambos andam em um trieiro tortuoso, no escuro, acendendo um fósforo por vez para enxergar o caminho. Não dá para desatar a correr numa situação dessas.
Agora, mesmo assim o cidadão desce a lenha. Não entendo. Inverta a situação. Se o pecuarista conseguir comprar o bezerro ou o boi magro mais barato, por qual motivo ele deixaria de fazer isso? “Ah, gosto muito de você e por isso vou pagar uns 30 reais a mais no seu bezerro, ok?” Você já escutou isso? Acho que não. O boi magro em 2008 valia 1300 reais. Hoje vale 1150 reais. Você pagaria 1300 num boi que vale 1150? Então por que, catzo, o frigorífico teria que pagar a mais no boi? Quem faz a oferta não é ele.

Assim como o pecuarista, ele dança conforme a música - compra mais barato se puder, quando puder.

São as regras não ditas da festa. Não dá para ser ingênuo nisto daí, tem que saber usar essas regras ao nosso favor. Aprender a comercializar. Aprender a deixar passar uma baixa e não vender gado por um tempo, aproveitar as altas da arroba. Aprender a usar a bolsa à seu favor, aprender a usar o mercado de opções na bolsa. O mercado de opção na bolsa se fosse utilizado, já é uma ajuda e tanto para o pecuarista. Hoje mesmo ele paga baratinho por um seguro de custo de produção. Poucos fazem. Poucos se importam.

É por isso que em mercado de commodity tem-se obrigatoriamente que acompanhar o mercado. Não é você quem faz os preços. É a oferta versus demanda. O cara do frigorífico fica ligado o dia inteiro no mercado.

O pecuarista fica? Claro que não. Ele não tem tempo, mas podia ligar pelo menos uma vez por dia para seu corretor e ver como anda as coisas, não? Poucos fazem. Poucos se importam.

Daí, para meu desespero, escutei esta pérola na Feicorte: “Não existe mais oferta versus demanda na pecuária.” Hein?! Então como se explica os mais de 70% de alta da arroba desde 2006?

Percebe o que está atrás deste pensamento? Isso significa que acompanhar e administrar a comercialização do gado é atividade secundária. O importante é produzir, produzir e produzir. O resto vai na marra.

Me estranha este foco somente na produção, pois quem não tem seu próprio fornecimento de bezerros tem que comprar animais no mercado. E depois engordar (produzir). Depois vender. Por que o foco somente na produção?

Nada contra produzir, produzir, produzir. Muito pelo contrário. Para alimentar o mundo teremos que produzir muito mais que fazemos hoje, especialmente no Brasil.

O problema é achar que a produção cairá do céu. Em um sistema capitalista onde a busca de lucro (devidamente em paz com o meio ambiente e o social) é o fator primordial da permanência de uma fazenda saudável financeiramente, a carne terá que subir, e muito, e se manter lá em cima para que a oferta de carne fique maior do que é hoje.

De duas, uma. Por causa dos preços, ou a carne passará a ser consumida por quem possui um poder aquisitivo maior, ou a produção terá que aumentar como dissemos, para manter os preços do jeito que estão hoje. Repare que os organismos internacionais, tal como a FAO, estão apostando na primeira opção.

Mais aí caímos em uma questão bem básica, caro leitor. Básica mesmo. Vacas.

Tirando de lado esta bobagem de se produzir carne artificial em laboratório (já faz uns 10 anos a primeira vez que li sobre isso), teremos vacas para produzir o que o mundo precisa? Ah, sim, Rogério, haverá mais vacas porque boa parte dos pastos hoje em dia são destinados para as fêmeas, enquanto os machos cada vez mais são terminados em sistemas fechados e intensivos.

Hmm será? Ok... Temos que ser justos, nos próximos cinco anos o mercado pode esfriar por causa da retenção de vacas que está ocorrendo agora no Brasil, retenção esta que já está no seu quinto ano e disso virá um monte de bezerros. Mas o raciocínio de longo prazo se mantém. Com o país crescendo e as terras se valorizando, ter vacas em áreas onde a terra é cara parece ser uma alternativa viável para a cria, ou o cidadão irá partir para a engorda ou passará para cana, eucalipto ou arrendar para soja?

Tudo bem, você vai encaminhar as vacas para as terras menos produtivas. Mas esse movimento já não aconteceu? Quero dizer, será que as vacas já não estão ocupando as áreas que deveriam ocupar? “Ah, Rogério, foi isso que ocorreu com os EUA na década de 60. Irá ocorrer no Brasil a mesma coisa.” Pode ser que sim, caro leitor, mas os EUA estão no hemisfério norte, enquanto o Brasil está no sul. O clima, solo, regime de chuvas, parasitas, incentivos do governo, zoneamento fitossanitário, tipo de milho, tipo de mercado, perfil do produtor são diferentes. Sendo diferentes, poderíamos ter resultados iguais? Ou seja, o que está sendo discutido é o seguinte. O Brasil é hoje os EUA da década de 60? Em muitos setores da economia, sim, mas especificamente na pecuária?

Não sei. Teríamos que desmatar para cobrir essa falta de espaço? É politicamente viável?

Obviamente aqui a gente está fazendo uma reflexão. Estamos pensando. Estamos jogando idéias no ar. Não é uma coisa fechada, mas aberta à interpretação e pontos de vista.

Mas retomando ao que o sujeito na Feicorte falou que hoje em dia não existe mais oferta versus demanda, me espanta como isso é difundido e disseminado.

Primeiro, deixe-me dizer que tenho acompanhado de perto o mercado do atacado. Se não bastasse acompanhar a arroba do boi, acompanho de perto o atacado. Agora estou acompanhando também o varejo. Existe relação entre gado gordo, atacado e varejo, é óbvio, todo mundo sabe, certo.

Será tão óbvio assim? À primeira vista, sim, mas ao se sujar as mãos nos dados, o que já descobri preliminarmente, é que existem padrões que saltam à vista. É um trabalho em evolução. Estou à caça dos relatórios que baseiam os dois mercados, sei que existe um mundo deles circulando toda semana. Alguns já recebo e acompanho. Outros ainda não. Se o leitor puder gentilmente me enviar alguns desses relatórios sempre que puder e sentir vontade, agradeço.

O fato é que existe relação entre a arroba do boi, o atacado e o varejo, e esta relação é mais importante do que se imagina. Obviamente isto não é novidade para quem está do lado de dentro de um frigorífico com as informações na mão. O difícil foi conseguir enxergar isso daí com os mesmos olhos, e com a mesma mentalidade e visão aqui do lado de fora. Não pretendo dizer que sei muito, mas estou aprendendo, estudando, refletindo. Estou com os olhos bem abertos.

Mexer com carne é uma dinâmica completamente diferente de mexer com fazenda, e para quem é pecuarista, conseguir mesmo que na imaginação e com uma boa dose de bom-senso, se colocar na posição de um cara que, no frigorífico, está na mesma posição relativa que a minha dentro da fazenda, ou seja, o cara que decide, o cara que cuida da compra do boi gordo e a venda da carne da mesma forma que você ou eu decidimos a hora e o preço da compra do boi magro e a venda do boi gordo, foi um passo e tanto.

Este cara é o cara que acompanha a arroba e a carne, caro leitor. É ele quem decide ficar comprado ou vendido em carne ou em boi. É o cara que decide estocar ou não, alongar as escalas ou encurtá-las. O tipo de compra à termo, para quando. Com um olho vê o que ele consegue colocar no atacadista, e com o outro vê as ofertas de gado gordo. E faz seu jogo. E este jogo, esta lógica interna da compra do boi e venda da carne é exatamente o foco do meu interesse ultimamente.

Muito para um pobre coitado que mora em Dourados? Talvez sim. A lógica interna da compra de boi magro e venda de boi gordo já é uma coisa complexa, cheia de manhas e meandros para o pecuarista se preocupar. Mas a gente tenta. Posso estar certo, posso estar errado. Pelo menos estou sendo honesto.

Nas próximas semanas a gente continua este papo com alguns gráficos.

FONTE: SCOT CONSULTORIA

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